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O estudo “O Futuro da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento: fragmentação, adaptação e inovação em um mundo em mudança”, realizado pela Oficina Global/CEsA a pedido da Plataforma Portuguesa das ONGD, foi publicado em março de 2021. Este trabalho, da autoria dos investigadores Ana Luísa Silva, Luís Mah e Luís Pais Bernardo, descreve a evolução da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) nos últimos vinte anos e pretende ser um ponto de partida para reflexões sobre as transformações em curso e os desafios que se colocam para os atores da CID (agências de cooperação bilaterais e multilaterais, organizações da sociedade civil, setor privado empresarial, entre outros). Neste segundo artigo da série sobre “Inovação para o Desenvolvimento” descrevemos a mais recente evolução da participação do sector privado na CID.
Nova arquitetura, novos atores
Na ‘velha arquitetura’ da CID, na qual a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) representava o fluxo financeiro mais importante para os países mais pobres, as organizações não-governamentais de desenvolvimento (ONGD) afirmam-se como os atores privados com maior expressão. No Mundo Multiplexo ganham importância e centralidade outros atores privados, como o sector filantrópico e o sector privado empresarial. Desde o início do século XXI, o sector filantrópico (grandes fundações privadas) afirma-se também como um ator com cada vez maior relevo e interessado em trazer para a arena da CID não só o seu poder mediático e financeiro, como a sua visão pró-mercado e pró-sector privado, ajudando à fragmentação do sistema. Por outro lado, a Parceria de Busan (2011) e mais tarde a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável trazem para o centro do debate um outro ator “privado”: as empresas.
O sector privado (empresarial)
O Encontro de Busan em 2011 é um marco na participação do sector privado empresarial como ator na e da CID e a sua centralidade na Agenda 2030 é muito maior do que na Agenda do Milénio. A globalização das redes de produção e das cadeias de valor, entre as décadas de 70 e 90, reforçou a centralidade das organizações deste tipo em operações económicas com impacto concreto no desenvolvimento global. Para além de capacidade financeira, as empresas trazem para a Agenda 2030 possibilidade de ganhos de escala e impacto com base na inovação, também são vistos como fundamentais. A participação do sector privado na CID é presumida como alavanca necessária para uma intervenção com escala e impacto das agências de cooperação nacionais, colmatando falhas ao nível da quantidade e também da qualidade da APD. Esta centralidade, bem como a maior complexidade do contexto global, aumentam o número de papéis que as empresas podem desempenhar para o desenvolvimento (ilustrados na Tabela 1). Os desafios para as empresas passam pelas respostas a exigências normativas com impactos operacionais, como o reporte do impacto concreto (ou material) das empresas ou às demonstrações de resultados económicos, sociais e ambientais – legitimando o seu papel enquanto ator da CID no quadro da Agenda 2030. O relatório Sector Privado, Inovação e ODS faz uma análise mais profunda das oportunidades e desafios à participação das empresas na nova CID.
A nova filantropia para o desenvolvimento
O aumento do peso dos fundos filantrópicos destinados ao desenvolvimento internacional é uma das tendências mais evidentes na CID, em contínua evolução desde o início do século XXI. O relatório Global Philanthropy Index de 2016 estimava que o valor da filantropia nos países da OCDE-DAC (Comité de Assistência ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) fosse equivalente a 45% do valor total de APD nesses países e os dados do relatório de 2020 mostram que os membros da OCDE-CAD são responsáveis por 99% dos fluxos filantrópicos com origem
nos países de alto rendimento. Em termos absolutos, os EUA continuam a ser, de longe, a maior fonte de fundos filantrópicos e o único país onde os fluxos filantrópicos são maiores do que os fluxos de APD. Em termos de sectores de atividade, o peso da filantropia é mais evidente no sector da saúde global, onde a Fundação Bill e Melinda Gates (BMGF na sigla original) se tornou um dos atores mais influentes, como se vê na Figura 1. A educação e o apoio à sociedade civil (e às questões de participação
democrática e governação) são outras áreas de atuação importantes para a filantropia e as questões ambientais (combate à emergência climática) têm vindo a ganhar relevância.
O que distingue a atual participação do sector filantrópico na CID da sua participação no passado não é apenas a sua importância financeira. Os protagonistas da filantropia atual, como norte-americanos Bill Gates e Warren Buffet, trazem consigo uma nova forma nova forma de fazer filantropia, intrinsecamente ligada à evolução do capitalismo e que é caracterizada pela utilização de métodos tradicionalmente usados pelo sector empresarial no sector não lucrativo: o chamado filantrocapitalismo. Mais do que um imperativo moral, a filantropia torna-se um investimento, uma oportunidade de mercado. No entanto, e apesar de contribuir para uma maior diversidade de fontes de financiamento às quais os governos dos países de rendimento baixo e médio podem aceder, o maior desafio do filantrocapitalismo é justificar a sua legitimidade política na arena da CID, como o debate em torno da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da sua relação com a BMGF demonstrou, durante o início da pandemia de Covid-19, em abril de 2020. Afinal, este fenómeno é uma consequência da evolução profundamente desigual do capitalismo e pode contribuir para reforçar desequilíbrios de poder já existentes no sistema.
O sector privado na CID: desafios e oportunidades para os atores ditos “tradicionais”?
No campo dos atores públicos e da ajuda bilateral, a valorização do papel central do sector privado na CID é evidente com a criação de instrumentos financeiros (blended finance) destinados a atrair e estimular o seu investimento teve como efeito dar uma maior visibilidade pública às Instituições Financeiras para o Desenvolvimento. No entanto, esta maior visibilidade traz com ela a necessidade de promover a transparência e a obrigação de imposição de requisitos de impacto positivo no desenvolvimento sustentável nos países recetores do investimento do sector privado que apoiam.
Há vários caminhos possíveis, com diferentes implicações, e cabe às organizações refletirem sobre eles à luz do mundo multiplexo e da complexidade.
O estudo “O Futuro da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento: fragmentação, adaptação e inovação em um mundo em mudança”, realizado pela Oficina Global/CEsA a pedido da Plataforma Portuguesa das ONGD, foi publicado em março de 2021 e está disponível para download aqui. No primeiro artigo desta série analisámos as transformações no contexto internacional em que a CID se insere. No terceiro e último faremos uma reflexão sobre os desafios das ONGD na nova CID.