Cooperação para o DesenvolvimentoInovaçãoSociedade Civil Organizada

Créditos da imagem: Gerd Altmann via Pixabay.


O estudo “O Futuro da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento: fragmentação, adaptação e inovação em um mundo em mudança”, realizado pela Oficina Global/CEsA a pedido da Plataforma Portuguesa das ONGD, foi publicado em março de 2021. Este trabalho, da autoria dos investigadores Ana Luísa Silva, Luís Mah e Luís Pais Bernardo, descreve a evolução da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) nos últimos vinte anos e pretende ser um ponto de partida para reflexões sobre as transformações em curso e os desafios que se colocam para os atores da CID (agências de cooperação bilaterais e multilaterais, organizações da sociedade civil, setor privado empresarial, entre outros). Neste terceiro e último artigo da primeira parte da série sobre “Inovação para o Desenvolvimento” falamos dos desafios das ONGD na nova CID. 


A evolução das ONGD na CID 


As Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento (ONGD) como as conhecemos hoje têm origem nos movimentos de solidariedade internacional dos anos 60 e 70 do século XX, ligados nomeadamente à luta pela descolonização e à oposição às guerras localizadas e periféricas da Guerra Fria. O legado desta origem continua a estar muito presente na narrativa de muitas ONGD, que se definem como internacionais e que hoje se apresentam como a voz da sociedade civil (global) contra as injustiças do processo de desenvolvimento.  


A importância das ONGD desenvolve-se ao longo das décadas de 1980 e 1990, impulsionada por uma maior oportunidade de participação no sistema das Nações Unidas, mas também pelo aumento do financiamento de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) disponível para apoiar a sociedade civil organizada em todo o mundo. Por falta de um organismo regulador ou agregador ao nível internacional, é impossível saber quantas ONG operam no mundo ou ter dados fiáveis e desagregados sobre a totalidade dos recursos financeiros que estas mobilizam. Contudo, é possível observar, para além da trajetória da APD acima descrita, uma tendência crescente no financiamento privado a ONGD na primeira década do século XXI, sobretudo proveniente de doações de cidadãos, mas também de fundações e empresas privadas. A agenda de redução da pobreza, inscrita nos Objetivos Desenvolvimento do Milénio (2000-2015), reforça a centralidade das ONGD como atores de desenvolvimento próximos das comunidades locais e capazes de contribuir para uma maior inclusão dos mais vulneráveis nos processos de desenvolvimento.  


Por outro lado, numa tendência mais recente, a crise financeira de 2008-2009 e a instabilidade económica da década seguinte, aliados provavelmente a um aumento do ceticismo do público em geral em relação ao impacto do trabalho das ONGD, tem levado a uma redução no financiamento público e nas doações de cidadãos durante os últimos anos. A pandemia de Covid-19 contribuiu para agravar a situação financeira de muitas organizações, mesmo que estas tenham respondido de forma muito expressiva em todo o mundo às consequências socioeconómicas da pandemia, colmatando as falhas dos Estados e usando a sua forte presença de terreno para chegar aos mais vulneráveis. 


Seis desafios para as ONGD no mundo multiplexo 


Tal como os outros atores privados da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, também as ONGD enfrentarão desafios nos próximos tempos, relacionados com as transformações da CID no mundo multiplexo. No estudo, destacamos seis desafios fundamentais, que aqui descrevemos de forma sucinta: 

  • Financiamento: com os governos de muitos doadores da OCDE-CAD a braços com as consequências da Covid-19 nos seus próprios países e, mais recentemente, com um renovado interesse na política de defesa devido à guerra na Ucrânia, é muito provável que os fundos de APD canalizados para e através de ONGD diminuam ou estagnem, como aconteceu no pós-crise financeira, há uma década. Caso a APD venha de facto a diminuir, o impacto nas ONGD (tanto do Sul como do Norte global) será grande, visto que esta continua a ser a sua principal fonte de financiamento. 

  • Avaliação de impacto: tal como o que é pedido à APD, as ONGD debatem-se com a necessidade de mostrar o impacto do seu trabalho. O exercício de ir para além dos tradicionais dados que quantificam serviços prestados e produtos distribuídos (outputs) e demonstrar impacto na sociedade e na vida de quem se pretende apoiar (outcomes) é complexo e continuará a ser um desafio.  

  • Localização da ajuda: a pandemia de Covid-19 trouxe para o centro do debate a questão da localização da ajuda e da assimetria de poder entre ONGD do Norte e do Sul. Este debate relaciona-se com questões sensíveis no sector, como as acusações de neocolonialismo, racismo e legitimidade. Há também uma renovada consciência de que no atual mundo multiplexo do capitalismo globalizado, os problemas locais têm muitas vezes um fio condutor que os liga a problemas noutros pontos do globo, Norte e Sul. 

  • Relação com o sector privado (empresarial): na Agenda 2030, o sector privado já não é visto apenas como financiador, mas como ator de direito próprio de e para o desenvolvimento.  Apesar da tendência de aumento de parcerias entre ONGD e empresas privadas na última década, parcerias que se tornaram também mais complexas devido à transformação do papel do sector privado, as ONGD têm mostrado dificuldade em reconhecer essa mesma complexidade e o facto de o sector privado já não se apresentar apenas como financiador.  
     
  • Inovação: para as ONGD, a inovação não é um caminho fácil. Apesar de cultivarem uma narrativa de inovadores sociais, que procuram alternativas ao sistema dominante (uma visão com raízes históricas, como já vimos), a evolução do sector enquanto prestador de serviços e executor de projetos a curto e médio prazo, bem como a sua ligação à APD (que tradicionalmente não está disposta a correr riscos), não fomenta uma cultura de inovação.  
     
  • Espaço cívico em transformação: face à crise da democracia liberal, a sociedade civil alerta para a redução do espaço cívico ou, por outras palavras, do espaço público que é tradicionalmente a esfera de atuação da sociedade civil em democracia.  


O atual contexto constitui um momento crítico para as ONGD na CID, que precisam de repensar a sua identidade, a sua legitimidade e a sua sustentabilidade face a um mundo muito diferente daquele em que se afirmaram como ator de desenvolvimento. Os caminhos possíveis são muitos, mas não são fáceis e exigem capacidade de reflexão, adaptação e inovação. 


O estudo “O Futuro da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento: fragmentação, adaptação e inovação em um mundo em mudança”, realizado pela Oficina Global/CEsA a pedido da Plataforma Portuguesa das ONGD, foi publicado em março de 2021 e está disponível para download aqui. No primeiro artigo desta série analisámos as transformações no contexto internacional em que a CID se insere. No segundo, a transformação do papel do sector privado na CID do mundo multiplexo. Este terceiro artigo conclui a primeira parte da série de textos sobre “Inovação para o Desenvolvimento”. Em breve, uma segunda parte da série continuará a reflexão a partir dos resultados do estudo “Inovação e Mudança nas ONGD Portuguesas”. 

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