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Imagem em destaque: Stephen Morrison/Africa Practice via Flickr CC BY 2.0.



Desde 2018, por resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, celebra-se a 7 de junho o Dia Mundial da Segurança dos Alimentos. Esta data pretende alertar para a ameaça global das doenças transmitidas por alimentos, que afetam indivíduos de todas as idades, em particular crianças menores de cinco anos e pessoas que vivem em países de baixo rendimento. A resolução 73/250 observa que “não há segurança alimentar sem segurança dos alimentos e que em um mundo onde a cadeia de abastecimento de alimentos se tornou mais complexa, qualquer incidente adverso de segurança dos alimentos pode ter efeitos negativos globais sobre a saúde pública, o comércio e a economia”. Também enfatiza que a melhoria da segurança dos alimentos contribui positivamente para o comércio, o emprego e a redução da pobreza. 


A Oficina Global falou com a investigadora Máriam Abbas, que compõe o Conselho Técnico e é coordenadora da Linha de Pesquisa do Ambiente do Observatório do Meio Rural em Moçambique, para saber mais sobre este tema. Confira o resultado da conversa:



OFICINA GLOBAL: Máriam, podemos falar de segurança alimentar sem falar de segurança dos alimentos? Qual a diferença entre os dois conceitos, qual a sua importância e como estão ligados? 


MÁRIAM: Não. A segurança dos alimentos e a segurança alimentar estão intrinsecamente ligados. A segurança alimentar por si só é um conceito que sofreu alterações e foi evoluindo ao longo do tempo, por forma a integrar componentes importantes que contribuem para a segurança alimentar. Uma destas componentes é a segurança dos alimentos. 


A segurança alimentar é entendida como o direito de todas as pessoas, de ter a todo o momento, acesso físico, económico e sustentável a uma alimentação nutricionalmente adequada, em quantidade e qualidade, e culturalmente aceitável, para satisfazer as necessidades e preferências alimentares, para uma vida saudável e ativa. 


A segurança alimentar é geralmente analisada com base em quatro dimensões, nomeadamente a disponibilidade, o acesso, o uso e utilização e a estabilidade. A dimensão referente ao uso e utilização está relacionada com a segurança dos alimentos, ou seja, a forma como os alimentos são preparados, manuseados e conservados, por forma a prevenir infeções e doenças e por forma a garantir que os alimentos mantenham os nutrientes suficientes para uma dieta saudável. O consumo de alimentos por si só não garante a segurança alimentar, é necessário que estes sejam seguros, nutritivos e culturalmente aceitos. 

A segurança alimentar é entendida como o direito de todas as pessoas, de ter a todo o momento, acesso físico, económico e sustentável a uma alimentação nutricionalmente adequada, em quantidade e qualidade, e culturalmente aceitável, para satisfazer as necessidades e preferências alimentares, para uma vida saudável e ativa. 


Entretanto, o último relatório do High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition refere que o conceito de segurança alimentar passou a considerar mais duas dimensões, nomeadamente a agência, que se refere à capacidade dos indivíduos ou grupos de tomar as suas próprias decisões sobre quais alimentos consumir, produzir e como esses alimentos são produzidos, processados e distribuídos dentro dos sistemas alimentares e a sua capacidade de se envolver em processos que moldam as políticas do sistema alimentar e governança; e a sustentabilidade, que refere-se à capacidade, de longo prazo, dos sistemas alimentares de prover a segurança alimentar e nutricional de modo a que não comprometa as bases económicas, sociais e ambientais que geram segurança alimentar e nutricional para as gerações futuras.
 


OFICINA GLOBAL: É possível traçar intersecções entre os temas da segurança alimentar e segurança dos alimentos com questões do meio ambiente e das alterações climáticas? E com as questões de saneamento básico, cuidados de saúde e educação? Em que medida? 


MÁRIAM: Com certeza. Para uma melhor compreensão destas intersecções, é importante falar primeiro dos sistemas alimentares. Os sistemas alimentares englobam todos os elementos (ambiente, pessoas, insumos, processos, infraestruturas, instituições, e outros) e atividades relacionadas com a produção, transformação, distribuição, preparação, consumo de alimentos e perdas alimentares, e os resultados destas atividades, incluindo os resultados socioeconómicos e ambientais. A segurança dos alimentos e a segurança alimentar e nutricional, apenas podem ser alcançadas por todos se existirem sistemas alimentares resilientes e sustentáveis. Os sistemas alimentares devem incorporar qualidades que sustentam e garantem a realização de todas as dimensões da segurança alimenta e nutricional. 


As alterações climáticas afetam a estabilidade dos sistemas alimentares, pois os padrões de produção e os sistemas de produção são muito dependentes do clima, em particular da precipitação. Em países como Moçambique, onde a agricultura é praticada essencialmente num sistema de sequeiro, ou seja, é muito dependente das chuvas, espera-se que as alterações climáticas afetem consideravelmente a produção de culturas alimentares, com impacto sobre a segurança alimentar. Além disso, os eventos climáticos extremos associados têm tido um impacto considerável ao longo de todo sistema alimentar (produção, transformação, distribuição, perdas, entre outros), com particular ênfase para o subsistema da produção, dificultando o acesso aos alimentos. 


Por outro lado, as questões de saneamento básico são fundamentais para garantir a segurança dos alimentos, como por exemplo o acesso a água segura. Sem acesso à água segura e de fontes melhoradas, não é possível garantir a segurança dos alimentos. Quando falo de fontes melhoradas, refiro-me, por exemplo, à água canalizada. Isto constitui ainda um grande desafio para Moçambique, em que cerca de 45% da população obtém água de fontes não melhoradas, nomeadamente poços não protegidos, água da chuva, água de superfície (rio, lago, lagoa), e outras. Este cenário é ainda pior quando distinguimos entre o meio rural e urbano, em que apenas cerca de 37% da população rural tem acesso a água de fontes melhoradas. A água é um recurso fundamental e essencial para a adoção de uma dieta segura e saudável. 

A segurança dos alimentos e a segurança alimentar e nutricional, apenas podem ser alcançadas por todos se existirem sistemas alimentares resilientes e sustentáveis. Os sistemas alimentares devem incorporar qualidades que sustentam e garantem a realização de todas as dimensões da segurança alimenta e nutricional.


Os cuidados com a saúde e a educação têm também um papel muito importante para a segurança alimentar e nutricional, tanto do lado do produtor, através da capacidade de produção e na obtenção de rendimentos, seja do lado do consumidor, através da adoção de dietas mais saudáveis e sustentáveis. A situação de nutrição e saúde das mulheres, por exemplo, tem um impacto importante no desenvolvimento das crianças, especialmente durante a gravidez e lactação. 


Os centros de saúde e as escolas são canais essenciais para a implementação de programas educativos e de apoio á alimentação aos grupos sociais mais vulneráveis, como por exemplo as mulheres grávidas e lactantes, crianças e idosos, principalmente nas comunidades rurais. 


OFICINA GLOBAL: Os países de baixo rendimento estão em situação de maior vulnerabilidade quando procuram assegurar a sua segurança alimentar e ao mesmo tempo a segurança dos alimentos que produzem? Porquê? Em que medida a pandemia da covid-19 atenuou ou acentuou os desafios enfrentados por estes países quanto à segurança alimentar e dos alimentos? 


MÁRIAM: No que se refere aos aspetos mencionados no ponto anterior, em particular as condições de saneamento básico, e também ao impacto das alterações climáticas, diria que sim. Mas claro que existem outros aspetos que contribuem para esta maior vulnerabilidade, a pobreza é um deles. A maior parte da população pobre, com insegurança alimentar e desnutrição crónica está concentrada nas zonas rurais, nos países em desenvolvimento, tendo a agricultura como a sua principal fonte de subsistência e de rendimento/emprego. Esta população será desproporcionalmente afetada pelas alterações climáticas, devido a sua fraca capacidade de adaptação aos efeitos dos eventos climáticos extremos associados e as mudanças no clima, o que irá exacerbar a situação atual no que se refere à insegurança alimentar e a pobreza. 


No entanto, por no que se refere à segurança dos alimentos, por mais caricato que pareça, os países de baixo rendimento, têm uma maior oportunidade para desenvolver uma agricultura mais saudável e sustentável, que garanta alimentos seguros e saudáveis. No caso de Moçambique, por exemplo, a agricultura é feita de forma menos intensiva e com pouco ou quase nenhum uso de pesticidas e fertilizantes químicos, o que contribui para a produção de alimentos mais naturais e dietas mais saudáveis. Neste âmbito, as questões preocupantes estão relacionadas com a diversidade das dietas e também com a questão do saneamento básico que mencionei anteriormente. O fraco acesso às dietas diversificadas aliado ao baixo rendimento contribui para os atuais níveis de insegurança alimentar em Moçambique. 


Relativamente à pandemia da Covid-19, diria que com certeza esta acentuou os desafios e veio também expor os principais problemas existentes. No caso de Moçambique, destaca-se alguns problemas que colocam em causa a segurança alimentar e nutricional, nomeadamente a dependência de importações, as limitações no comércio informal e nas oportunidades de trabalho, com efeitos diretos sobre os rendimentos e redução do poder de compra, agravado pelo aumento generalizado dos preços dos produtos alimentares. As limitações das deslocações para os países vizinhos, colocou em causa também o rendimento de muitas famílias que dependem das remessas monetárias enviadas pelos seus familiares que trabalham nas plantações ou machambas, nas minas, e em outras atividades nos países vizinhos. O impacto também se fez sentir ao nível do investimento estrangeiro no país, e na limitação das atividades de algumas empresas de capital estrangeiro, afetando diretamente as famílias rurais que prestam serviços temporários e/ou permanentes à essas empresas. Isto evidencia a importância de políticas e incentivos a produção que visem o alcance e garantia da soberania alimentar, por forma a reduzir os efeitos de choques externos em contextos de crises. 


OFICINA GLOBAL: Por fim, recomenda alguma leitura suplementar ou outros conteúdos para quem tem interesse em saber mais sobre este assunto? 


MÁRIAM: Recomendo a visualização da reportagem multimédia “Terra de todos, terra de alguns”, que conta como o Corredor de Nacala – uma das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique – foi fortemente afetada pelo desvio de investimentos agrícolas advindos da crise mundial de alimentos, em 2008, e pela consequente instalação de dezenas de empresas na região.  


Também recomendo que visitem o site do Observatório do Meio Rural (OMR), que é uma instituição de pesquisa independente e sem fins lucrativos, e que visa contribuir para o para o desenvolvimento agrário e rural numa perspetiva integrada e interdisciplinar, através de investigação, estudos, debates e advocacia acerca das políticas e outras temáticas agrárias e de desenvolvimento rural; e contribuir para a elaboração e a monitoria das políticas agrárias e de desenvolvimento rural. O OMR tem várias publicações na área de políticas públicas, agricultura, floresta, terra, segurança alimentar, ambiente, pobreza, desenvolvimento rural e agrário, conflitos rurais, entre outros. Além disso, o OMR dispõe de uma biblioteca digital acessível e gratuita, com várias publicações, artigos, estudos, palestras e livros sobre diferentes temáticas, incluindo, mas não limitado, às temáticas de estudo da organização. 


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