Agenda 2030Clima e Meio AmbienteDireitos Humanos

Escrito por Vivian Lie Kato de Lima, este texto foi originalmente publicado no portal do Politize!, uma organização da sociedade civil brasileira sem fins lucrativos com a missão de formar uma geração de cidadãos conscientes e comprometidos com a democracia, levando educação política a qualquer pessoa, em qualquer lugar. O conteúdo original está disponível aqui e é republicado pela Oficina Global via Licença CC BY-NC-ND 4.0. Créditos da imagem em destaque: “Growth is a Community Effort” (adaptado), de Marko Jovanovac, via The Greats CC BY-NC-SA 4.0.


A questão da fome é um assunto que tem voltado a ocupar espaço de prioridade na lista de preocupações das sociedades do mundo todo, inclusive no Brasil.
 

Em um contexto de pandemia, mudanças climáticas e promoção de queimadas de biomas diversos pelo homem para cultivo da agropecuária, esse problema se torna um desafio e é agravado com a escassez de produção e alta generalizada de preços dos alimentos. Segundo o relatório da ONU “O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo“, espera-se o crescimento expressivo de até 132 milhões de pessoas em situação de fome até o final de 2020. Assim, o debate sobre Soberania Alimentar e o combate à fome faz-se relevante e imprescindível.
 

Mas o que é Soberania Alimentar? 

O termo Soberania Alimentar foi definido em 2001, durante o Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar realizado em Cuba, por meio do movimento Via Campesina. Esse conceito é postulado como o direito de todos ao acesso a alimentos saudáveis, de forma regular e sustentável, pautado pela identidade cultural alimentar de seu próprio povo e região. Sua visão valoriza a produção e o mercado locais, a autossuficiência, a sustentabilidade e a autonomia das comunidades. 

Esses preceitos, contudo, são aplicados desde 1996, quando ocorreu, em Roma, a Cúpula Mundial de Alimentação. Naquela época, estava em voga a implementação de diversas políticas neoliberais que, juntamente com o fenômeno da globalização e da expansão de corporações multinacionais das indústrias alimentícia e do agronegócio, levaram a um crescimento da produção agrícola altamente mecanizada e monocultora, bem como da padronização do consumo de alimentos.
 

As sociedades passaram assim a consumir cada vez mais alimentos ultra processados. Esses produtos muitas vezes não se originam da região onde são produzidos e passam por diversos processos químicos, sendo, em sua maioria, nutricionalmente pobres.
 

Essa conjuntura também afetou camponeses, agricultores familiares, indígenas e demais povos tradicionais, os quais tiveram sua economia e sua cultura enfraquecidas. Esse contexto, então, levou grupos e organizações ligados a esses segmentos da sociedade a lutar pelo direito à alimentação e pelo desenvolvimento da economia rural. Tornou-se, a partir disso, importante a defesa da soberania alimentar e o debate sobre questões relacionadas ao tema.
 

Meio ambiente e soberania alimentar
 

Em meio a essas circunstâncias, o modelo de produção agrícola adotado desde então pelas grandes indústrias tem provocado diversos efeitos de degradação do meio ambiente. Dentre eles, podemos citar os seguintes pontos:
 

A biodiversidade está cada vez mais ameaçada
 

A prática desmedida da agropecuária, bem como o cultivo e o incentivo ao consumo dos mesmos tipos de produtos em diversas partes do mundo estão levando à redução das variedades de espécies. De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), 66% da produção agrícola mundial é suprida pelo cultivo de apenas nove espécies de plantas. Soma-se a isso o fato de que espécies não nativas estão sendo cultivadas em locais em que não possuem predadores ou outros agentes para manter o equilíbrio natural do meio ambiente.
 

A produção exaustiva provocada por esse modelo, juntamente com as mudanças climáticas e o crescimento da industrialização e da urbanização, acabam levando ao esgotamento dos solos e prejudicam a vida de outras espécies nativas e silvestres por conta da destruição de seu habitat. Além disso, afetam o sistema alimentar de muitas comunidades ao redor do mundo, tornando as bases alimentares bastante similares entre si e trazendo vulnerabilidade a crises e a insegurança alimentar. 

Esgotamento dos fatores de produção
 

A utilização cada vez maior de agrotóxicos na produção agrícola, sem responsabilidade ecológica, tem provocado contaminação do solo, de lençóis freáticos e dos próprios alimentos. Até mesmo a polinização é prejudicada, uma vez que muitos insetos são os agentes desse processo e acabam não sobrevivendo à poluição. 

Ademais, a produção em grande escala tem exaurido os nutrientes do solo, causando erosão e salinização. Como consequência, todo esse processo tem demandado cada vez mais terras para produção agropecuária, levando ao crescimento do desmatamento de florestas e outros biomas. 

Povos tradicionais são duramente afetados
 

Comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e agricultores familiares, cuja produção agrícola se dá de maneira ecológica e sustentável, não conseguem se manter nesse contexto econômico e cultural dominado pelas grandes agroindústrias. O conhecimento tradicional adquirido ao longo de gerações sobre o equilíbrio do ecossistema, as propriedades medicinais e nutricionais de plantas silvestres e os costumes alimentares foram enfraquecidos dentro desse contexto. 


Alternativas para a manutenção da soberania alimentar
 

Os fatores acima expostos demonstram como a produção agrícola, o meio ambiente e a soberania alimentar estão interconectados. A partir daí, podemos encontrar alternativas para garantir o direito à alimentação a todos. 

Criação de leis
 

Primeiramente é necessário que exista todo um aparato institucional e normativo para que determinadas práticas sejam incentivadas e consigam ser realizadas. Assim, o governo pode atuar estabelecendo leis e políticas que protejam e fortaleçam a produção de alimentos local e sustentável. No Brasil, por exemplo, foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN (Lei nº 11.346/2006) visando direcionar ações para garantir o direito à alimentação. 

Redes de colaboração
 

O estabelecimento de uma governança que permita a articulação entre os atores pode criar um ambiente favorável à criação de redes de colaboração entre produtores, técnicos e governantes locais, garantindo assim a participação ativa da população nas decisões. Essas redes poderiam formar espaços para produção, venda ou doação de alimentos, realizar estudos e pesquisas para implementação de políticas públicas, e promover a capacitação para o manejo sustentável do solo, das matas e dos rios, incentivando a produção de produtos orgânicos e regionais.
 

São exemplos de redes desse segmento o Mesa Brasil Sesc, a RedeLASSAN, a NutriSSAN e o Mapa de Feiras Orgânicas.
 

Valorização da agroecologia 

Essa visão fundamenta práticas baseadas na preservação ambiental, na economia sustentável, na biodiversidade e nos fatores socioculturais tradicionais das comunidades. 

Incentivo à agricultura familiar
 

Ações voltadas para o incentivo à agricultura familiar e para as produções indígenas e quilombolas também podem ganhar mais espaço. Esse tipo de política pública pode promover o desenvolvimento rural, com a garantia de mercado, de produção e preços mais acessíveis e circulação da economia. Assim, esses povos garantiriam sua autonomia alimentar e ainda contribuiriam com o abastecimento regional de alimentos.
 

Outras ações
 

estabelecimento de feiras e mercados locais, de restaurantes populares e de cozinhas comunitárias também são modos de garantir a soberania alimentar. Os governos também podem criar iniciativas e normas para que as indústrias adaptem sua produção a modelos sustentáveis e para que se incentive o desenvolvimento de novos mercados nessa área.
 

Exemplos mais amplos disso consistem na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), a qual estabeleceu diretrizes para as empresas no que se refere a seus impactos ambientais, e na Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010).
 

Já no que tange aos consumidores, estes podem ser incentivados ao consumo de produtos mais ecológicos. Isso pode se dar tanto por meio de política de preços mais acessíveis, bem como por meio da conscientização da importância da sustentabilidade, como, por exemplo, através do fornecimento de informações sobre a cadeia produtiva do alimento consumido.
 

Soberania alimentar e políticas públicas no Brasil
 

No Brasil, podemos encontrar exemplos práticos de políticas públicas que visam assegurar a alimentação, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), voltadas principalmente para agricultores familiares, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o qual realiza compras públicas para a alimentação escolar. Já o Guia Alimentar para a População Brasileira consiste em um exemplo de meio para a transmissão de informações sobre nutrição, fornecendo diretrizes para uma alimentação balanceada e saudável para os brasileiros.
 

Dado que a alimentação é um direito social fundamental estabelecido no art. 6º da Constituição Federal do Brasil, o Estado tem o papel de criar esforços para proteger e valorizar a produção nacional e local de alimentos. É importante que sua população não fique dependente da produção externa e que consiga manter seu próprio abastecimento. A soberania alimentar poderá ser garantida quando houver também esse cuidado com um estilo de vida sustentável para o meio ambiente.
 

Gostou do conteúdo? Confira as referências utilizadas aqui e outras publicações do portal Politize! aqui. E caso te interesses pelos tópicos abordados neste post, a Oficina Global publicou recentemente uma entrevista com Máriam Abbas, do Observatório do Meio Rural de Moçambique, sobre segurança dos alimentos e segurança alimentar. Descubra o que difere esses conceitos aqui.


1 comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *

Enviar