A última década foi marcada por um número sem precedentes de deslocados em decorrência de conflitos armados, violações de direitos, perseguições ou alterações climáticas. Segundo a ONU, no ano passado o mundo registrou quase 80 milhões, sendo 26 milhões com status de refugiados. Só em 2020, chegaram à Europa mais de 95 mil refugiados e migrantes, dos quais quase 25% eram crianças. Esses números apresentam um excerto da grave dimensão da crise global dos refugiados que tem se agravado com a pandemia de Covid-19.
Este texto é um relato da experiência da autora em seu trabalho com refugiados e migrantes em Portugal. Mestre em Ciências da Linguagem pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, instituição onde atualmente é doutoranda em Linguística, Ana Sofia Souto é, desde outubro de 2020, professora voluntária de português para migrantes e refugiados no Serviço Jesuíta aos Refugiados, no âmbito do projeto “Entre Palavras”. Apaixonada pela língua e pela cultura portuguesas, procura contribuir para a integração linguística de migrantes no território português.
Imagens de corpos sem vida a boiar em vários mares enchem os nossos ecrãs de televisão. Os nossos jornais estão prenhes de números de mortos. Mais um barco que naufragou. Mais um bebé que morreu. Mais uma vida cortada cerce.
Haverá ironia maior do que morrer a lutar pela vida? Haverá horror maior do que a morte ser a nossa espada e a nossa parede, do que o constante viver entre a espada e a parede, entre a morte e a morte? Se ficam, morrem – se partem, morrem.
Cercado por paredes estilhaçadas e bombas a cair é difícil tomar decisões. Ainda assim, a esperança de chegar, de salvar-se, de ser acolhido, é maior do que o medo do ocaso.
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Sempre fui muito atenta à realidade que me rodeia e, como jovem europeia do século XXI, é-me impossível ignorar a crise dos refugiados.
Os refugiados não são um número ou uma rocha, algo que possamos riscar de um papel ou um simples objeto que podemos colocar onde nos der mais jeito. São pessoas de sangue e com sentimentos, esperanças, ideias e sonhos, muitos sonhos.
Vivemos num mundo em que um passaporte tem valor de vida ou de morte, de aceitação ou de recusa. Um mundo em que um passaporte vale mais do que uma vida humana – não ter passaporte pode significar a morte. Mas nada pode estar acima do valor da vida e da dignidade humanas – nada. O dia em que escolhemos deixar alguém para trás é o dia em que nós próprios ficamos para trás. O dia em que desistimos de um nosso semelhante – de um outro credo, de uma outra cor e de uma outra geografia é certo, sendo estas diferenças superficiais que nada mudam e não podem servir como legitimação de atos de injustiça – é o dia que escolhemos desistir de nós mesmos. Essa desistência vem da perda da humanidade – da busca ilusória de justificações para atos bárbaros e cruéis que nada têm a ver com o que o projeto europeu, que também devia ser o nosso projeto ético pessoal, pretende e clama a cada dia.
A mera contemplação (indiferente, inocente, crédula?) da morte dos outros não é mais do que uma nossa morte antecipada. Estamos tão habituados e familiarizados com estas (nossas) mortes antecipadas que já nem nos apercebemos que tantas partes de nós (quiçá demasiadas) já feneceram.
Que humanidade queremos nós?
Que futuro desejamos?
Que mundo queremos construir para nós e para as gerações vindouras?
A crise dos refugiados é uma crise que me incomoda e, portanto, decidi fazer algo em relação a isso – decidi importar-me desempenhando uma das funções que mais gosto – ensinar. Ensinar uma língua é lançar uma ponte de esperança, é estreitar nações e culturas. Não há satisfação maior para o professor do que ver os alunos, que, no início, não conseguiam falar português, dizerem agora frases inteiras, manifestarem-se primeiro timidamente, mas depois já sem medo, auto-advogaram-se, ganharem uma voz. Sinto, de facto, que estou a dar a estas pessoas uma voz – a sua voz em português, a sua-nossa língua, que lhes possibilitará integrarem-se na nossa sociedade e construírem um novo futuro de sonhos e de esperança.
A cada ensinamento que transmito recebo um pouco mais. Não é nada de concreto – é apenas a sensação de estar no local em que devia estar, a fazer exatamente o que devia fazer – é ser o novo alfabeto e a nova esperança dos meus alunos.
Fala-se muito em construir um mundo melhor. Há muito tempo que me apercebi – essa construção começa e acaba com cada um de nós. Construir uma Europa melhor começa com cada um de nós. Por isso, é fundamental escolhermos envolver-nos nos assuntos do dia-a-dia, nas problemáticas que enfrentam as nossas comunidades. Hoje. Não amanhã. Hoje. Agora. Não mais tarde, quando estivermos mais livres (sempre à espera desse tempo livre que nunca virá se não o exigirmos para nós). Agora.
Apelo a uma ação concreta. Desafio cada pessoa a dedicar uma hora da sua semana ao serviço social à sua comunidade. Cuidar no trabalho e na família é fundamental. Mas é preciso ir além disso – é preciso cuidar também de quem não tem trabalho ou família, de quem não tem teto ou cuidado. É preciso cuidar de quem nunca recebeu ou conheceu cuidado. Finalmente, é preciso cuidar do ato de cuidar para que o cuidado nunca morra.
Quantas vezes não anda o cuidado sozinho, órfão de pai e de mãe, sem ninguém que cuide dele? O cuidado deixa de ser cuidado quando deixamos de olhar em volta; quando perdemos a esperança que nos resgatará da escuridão ou nos recusamos a ser a esperança dos outros; quando andamos sempre em frente e nunca questionamos o propósito desse andar nem a assertividade desse trajeto; quando nos esquecemos de alumiar os outros para nos iluminarmos apenas a nós mesmos; quando somos frios, céticos, invejosos, cruéis ou, pior ainda, amorais, indiferentes; quando impomos uma direção, um caminho, sem mostrar que todas as direções e todos os caminhos são afinal escolhas válidas e que cada um deve ter liberdade para escolher o seu próprio rumo; quando não somos a luz que gostaríamos de ver e nos contentamos com a bruma; quando nos queixamos e queixamos (ou falamos e falamos), mas não tentamos ser a solução para os problemas que vemos; quando não agradecemos ou não reconhecemos o cuidado de quem de nós cuidou, tratou ou nos quis bem.
Temos de ter cuidado com rotinas de comodismo e de descuidado. Devemos temer, acima de tudo, a morte do cuidado. A morte do cuidado ao próximo é a morte da humanidade – a humanidade será um cadáver quando não restar ninguém que cuide do cuidado. Tal como tão bem sumarizou o poeta Eugénio de Andrade no seu poema “Rotina”,
Passamos pelas coisas
sem as ver, gastos, como
animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não
respondemos, se alguém nos pede
amor não estremecemos, como
frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão,
apodrecidos.
O meu cuidar atual é um cuidar que envolve despontar nos meus alunos a motivação e o interesse para a aprendizagem de uma língua nova, quase sempre de uma família linguística distante da deles; é um respeitar das suas necessidades, dificuldades e ritmos de aprendizagem; é um estimar da sua língua e da sua cultura e um aproximar da nossa língua e cultura à sua; é um ensinar e um aprender permanentes; é um questionar, um voltar atrás, um adaptar; é um imaginar, um planear, um festejar; é um desafiar e um crescer constantes; é um despontar, um renascer, um florescer inabaláveis.
E o vosso cuidado atual, qual é? De quem ou do que cuidam? Não esperem pelos outros. Sejam o cuidado que querem ver.
Já sabem – não se descuidem. Cuidem do cuidado. É preciso cuidar do cuidado.
Se tens curiosidade para entender mais sobre os temas de migração e refúgio, sobretudo nos contextos europeu e português, a Oficina Global sugere as seguintes leituras: A migração na Europa, Refugiados e migrantes em meio à pandemia da COVID-19 e as ações da União Europeia, Um ano depois: como a pandemia afetou refugiados, requerentes de asilo e a migração, Portugal já recebeu 724 refugiados no âmbito do Programa Voluntário de Reinstalação do ACNUR e No acolhimento de refugiados, Portugal tem “um longo caminho a percorrer”.
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