Agenda 2030COVID-19Igualdade de GéneroTransformação

Este artigo foi publicado originalmente pelo blogue From Poverty to Power. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global. 

Para aprofundar o debate sobre este tema, ouve também o episódio 3 do nosso podcast! 


Num outro artigo, Nikki van der Gaag analisou o impacto desastroso da pandemia nos direitos das mulheres. Agora ela pergunta o que significaria construir uma economia centrada no cuidado, e não na exploração? 


Em agosto do ano passado, o Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que, no passado, a única maneira de vencer os vírus foi por meio de “ajustes permanentes” na economia e nas sociedades, e acrescentou: “Não vamos, não podemos voltar a como as coisas eram.”  


“Reconstruir melhor” tornou-se tanto um clichê quanto um grito de guerra da pandemia. Mas Theo Sowa, Diretor Executivo do Fundo de Desenvolvimento das Mulheres Africanas, está entre os que alerta: “Quando as pessoas dizem ‘reconstruir melhor’, espero que possamos dizer ‘construir melhor’, porque o ‘antes’ (o que já estava construído) não era bom para a maioria de nós.” 


Então, o que tornaria o “melhor” possível em termos de direitos das mulheres e igualdade de gênero, de forma a beneficiar a todos nós? 


Uma grande ideia, que se baseia no trabalho das pensadoras feministas Nancy FraserDiane ElsonNira Yuval DavisNancy Folbre e muitas outras, envolve uma mudança radical, moldando um novo sistema econômico global que seria muito diferente do que temos agora. Como observa Lynne Segal, uma das autoras de um livro chamado “Care Manifesto” (Manifesto do Cuidado), “precisamos que as instituições estatais e as comunidades tenham foco no cuidado, para ajudar a nutrir e permitir toda a nossa capacidade de dar e receber cuidados.” A questão do cuidado deveria tornar-se uma responsabilidade de todos. 


Então, como seria uma economia do cuidado, um mundo do cuidado? Muitas organizações e grupos já estão começando a mapear os detalhes. Aqui apresento apenas cinco ideias, e escolhi um elemento-chave de cada uma. 


O Norte Global pode aprender com o Sul Global. Quando se trata de cuidado e sobrevivência, as mulheres do Sul Global há muito lideram o caminho. Por exemplo, as lições de como as comunidades se apoiaram umas às outras durante as crises de Ebola e HIV/AIDS (VIH/SIDA) foram muito evidentes durante a pandemia. Jessica Horn, escritora, ativista e co-fundadora do Fundo Feminista Africano, diz que: “Embora raramente seja reconhecido, um dos modelos mais convincentes e radicais de cuidado ativista foi desenvolvido por mulheres em África no meio da epidemia de HIV/AIDS (VIH/SIDA) – uma das crises de gênero mais devastadoras que o continente enfrentou no final do século XX.” Um artigo da Oxfam “Care in the time of Coronavirus” (Cuidado em tempos de Coronavírus) propõe uma agenda para a mudança e observa que por muito tempo: “ecofeministas e eticistas indígenas argumentaram que o cuidado é um aspecto determinante da interdependência entre comunidades, sociedade e meio ambiente.”  


“Cuidar” não é uma opção “leve”, é também uma abordagem econômica. O cuidado com nós próprios, nossas comunidades, nossas sociedades e culturas e nosso planeta está interligado. O cuidado não diz respeito apenas aos indivíduos, mas à maneira como nossas sociedades estão estruturadas. Isso foi referido em um artigo de 2007 por Shara Razavi, como “care diamond” (diamante de cuidado). Esse modelo inclui a família/casa, os mercados, o setor público e o setor sem fins lucrativos. 


Em 2020, o Women´s Budget Group (Grupo de Orçamento de Mulheres) do Reino Unido publicou um relatório detalhado sobre como seria uma economia do cuidado pós-pandemia. O relatório abrange igualdade de gênero, bem-estar e sustentabilidade e cobre tudo, desde comércio a impostos e creches subsidiadas e licenças remuneradas a infraestrutura social e física e meio ambiente. 


As pessoas vêm antes do lucro e lidar com as mudanças climáticas é fundamental. A priorização do cuidado deve nos levar além dos resultados financeiros. Os princípios feministas para um acordo internacional pós-COVID-19, elaborados por cinco organizações internacionais feministas, colocam o problema muito claramente: “A degradação ambiental causada pelo homem, as mudanças climáticas e um sistema econômico capitalista que prioriza o crescimento econômico e o lucro acima de tudo tornou o surgimento e a disseminação da COVID-19 e outros vírus zoonóticos não apenas possível, mas também altamente provável.” A ação para lidar com isso, portanto, “deve estar enraizada nas perspectivas feministas de paz, igualdade, justiça e solidariedade”. Essas definem seis áreas críticas de preocupação – cessar-fogo, violência baseada em gênero, saúde, meio ambiente, economia e militarismo e segurança. 


A revista da New Internationalist “The Care Economy: what would it take?” (A Economia do Cuidado: o que é preciso?) apresenta artigos de todo o mundo sobre como a pandemia pode desencadear mudanças estruturais nas nossas economias: “O que precisamos urgentemente é de uma economia que substitua o lucro universal por um cuidado universal, tanto uns dos outros quanto do ambiente que nos mantém vivos.” 


Somos tão fortes quanto os membros mais fracos de nossa sociedade, por isso precisamos centralizar suas necessidades e ouvir suas vozes, ao invés das vozes dos mais poderosos. A Aliança Feminista pelos Direitos, elaborou uma política feminista para enfrentar os desafios da COVID-19, que é baseada no cuidado e que: “reconhece e prioriza as necessidades das comunidades mais vulneráveis.” Endossada por organizações de mais de 100 países e por mais de 1600 indivíduos, é uma a ideia de mulheres do Sul Global e de comunidades marginalizadas do Norte Global e descreve nove áreas principais, incluindo segurança alimentar, saúde, educação, desigualdade, violência e abuso de poder, com ações específicas para cada uma.  

“Cuidar” não é uma opção “leve”, é também uma abordagem econômica. O cuidado com nós próprios, nossas comunidades, nossas sociedades e culturas e nosso planeta está interligado. O cuidado não diz respeito apenas aos indivíduos, mas à maneira como nossas sociedades estão estruturadas.


O cuidado não é apenas uma responsabilidade das mulheres. Um número crescente de homens está reconhecendo a necessidade de mudança. Por exemplo, MenCare (Homens que cuidam) é uma campanha que promove a igualdade de gênero por meio do envolvimento dos homens como pais. Está acontecendo em mais de 50 países. Men Engage (Homens Engajados), uma aliança global de mais de 700 organizações que trabalham para envolver homens e meninos na igualdade de gênero, organizou um Simpósio semanal que continua até junho de 2021. É chamado de “Ubuntu” – um termo Nguni Bantu da África do Sul que se traduz como “Eu sou porque você é”. Baseia-se em um “senso compartilhado de compaixão, responsabilidade e humanidade para todos” e tem uma política de cuidado informada por feministas como uma de suas principais vertentes.  


É tempo de mudança. Temos ideias de como fazer isso. Essa mudança deve ser estrutural e pessoal, interseccional e conectada. O ano da pandemia também foi o ano em que feministas e ativistas pelas mudanças climáticas e o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) mostraram a indivisibilidade das desigualdades, bem como a importância vital da solidariedade. Os poderosos devem ouvir os impotentes, os brancos devem ouvir os negros e os homens as mulheres. A mudança envolverá uma reformulação dos contornos do nosso mundo, de modo que o Norte Global não domine mais o Sul Global e as mudanças climáticas parem de devastar o planeta. 


Essas são mudanças radicais. Mas a crise ofereceu uma oportunidade de mudança, bem como um enorme desafio à maneira como as coisas sempre foram feitas. Isso não será fácil. Mas, como disse Simone de Beauvoir, feminista, escritora e filósofa francesa do século XX: “Nunca se esqueça que uma crise política, econômica ou religiosa será suficiente para lançar dúvidas sobre os direitos das mulheres… Você terá que ficar vigilante por toda a vida.” 


A vigilância parece um pequeno preço a pagar por um mundo com mais cuidado. E há milhões de pessoas por aí que acreditam que não temos outra opção a não ser tentar. 


Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado no blogue From Poverty to Power

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