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Créditos da imagem: Julian Wan via Unsplash.


No início de 2021, em pleno confinamento pandémico, deparei-me por acaso com um pequeno livro da filósofa Donatella di Cesare intitulado O tempo da revolta (2021, Edições 70). Donatella di Cesare é professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma “La Sapienza”, mas nem por isso tem deixado de trabalhar temas atuais a partir da filosofia. É conhecida principalmente pelo seu trabalho na área da filosofia das migrações, ao qual dedica o livro Estrangeiros residentes. Uma filosofia da migração (2017, publicada em português no Brasil, pela Editora Âyiné). Em Estrangeiros residentes, di Cesare ocupa-se de um tema (a migração) ainda ignorado pela filosofia e em grande parte pela política estatocêntrica, mas no centro dos acontecimentos globais. N’O Tempo da Revolta, faz o mesmo com a revolta, um conceito pouco trabalhado do ponto de vista da teoria política e da filosofia, sobretudo quando comparado com a ‘revolução’, mas que está presente diariamente nos telejornais de todo o mundo.


De capítulos curtos e leitura rápida, o livro apresenta-nos uma reflexão política e filosófica sobre a revolta, a partir de uma constatação: a nossa atualidade é marcada pela irrupção de protestos, atos de contestação e desobediência, como um fogo que se alastra. Mesmo que seja por vezes sol de pouca dura, este fenómeno global ultrapassa fronteiras, parece ter vindo para ficar (nem a pandemia o travou) e, segundo a autora, sugere um regresso ao espaço público perdido. Sempre a partir de manifestações recentes de revolta, mas recorrendo também a exemplos do passado, di Cesare reflete sobre o que significa a omnipresença da revolta e sobre questões relacionadas, como a resistência, o conflito, o poder, a legalidade e a desobediência.


A ideia de que a revolta, vista muitas vezes como um fenómeno ‘menor’, pode e deve ser analisada teórica e filosoficamente é muito interessante no atual contexto de incerteza e de mudança em que vivemos. É sobretudo importante e relevante para quem pensa e trabalha atualmente a sociedade civil nas suas várias formas. Vivemos em tempos de polarização e de crise da democracia e do espaço público. Os dados do mais recente relatório Civicus Monitor (2022) são alarmantes: apenas 3,1% da população mundial vive em países cujo espaço cívico é considerado ‘Aberto’ – isto é, países onde os cidadãos e as organizações da sociedade civil podem exercer sem restrições as suas liberdades democráticas fundamentais. Entre 2021 e 2022, a situação piorou: 13 países viram o seu espaço cívico tornar-se mais repressivo e apenas um registou estar no caminho para a abertura. O mais recente relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), “Uncertain Times, Unsettled Lives: Shaping our Future in a Transforming World” (“Tempos Incertos, Vidas Destabilizadas: dar forma ao nosso Futuro num Mundo em Transformação”), sublinha que a polarização política que se verifica um pouco por todo o mundo é resultado direto e alimenta-se dos tempos de incerteza em que vivemos. Nas democracias em declínio, as pessoas distanciam-se da política e da participação.


O conceito de sociedade civil evoluiu no século XX (sob a influência, em especial, de pensadores como Tocqueville e Gramsci) para um conceito ligado à não-violência e ao próprio ideal de civilidade. Quem se diz pertencer à sociedade civil procura agir dentro da legalidade que lhe é concedida em democracia, com objetivos ligados ao bem comum – a sociedade civil é, na verdade, consequência da evolução da democracia liberal (podemos argumentar que só em democracia é que existe plenamente). No entanto, muitos movimentos ativistas atuais agem à margem da legalidade e, mesmo mantendo-se não-violentos em teoria, tem muitas vezes como consequência o conflito – pensemos, por exemplo, nos atos de desobediência civil dos jovens ambientalistas de movimentos como a Extinction Rebellion ou o Just Stop Oil. Serão estas manifestações de revolta à margem da legalidade mais um sinal de uma democracia em crise?


Ao longo do livro, observamos também uma tensão entre o indivíduo e o coletivo. Se a ideia de revolução tem um cunho coletivo indiscutível – uma das características dos revolucionários é terem um programa de transformação que levam a cabo para transformar o statu quo (pensemos na revolução francesa, na revolução soviética) -, já na revolta (emocional, espontânea, reativa) o indivíduo está no centro: “A revolta é o grito do indivíduo que se ergue contra a absurdidade da existência, é a sua recusa à justiça, a sua repulsa ao terror. (…) O alienado individual, por se sentir alheio ao mundo, rebela-se. Esta alienação é precisamente o que tem em comum com os restantes, que lhe faz sentir uma certa cumplicidade.” (p. 56). O que di Cesare nos diz, contudo, é que se olharmos para o conjunto, é possível ver sinais de consciência coletiva mesmo entre movimentos que surgem em pontos diferentes do globo – alguns que, para além da revolta, procuram prefigurar a mudança que querem que aconteça, um pouco à luz de tradições anárquicas (do ponto de vista da distribuição de poder e da liderança). Um dos exemplos explorados no livro é o dos hackers-ativistas Anonymous, que usam o poder do mundo digital para, incógnitos e descentralizados, apoiarem manifestantes e movimentos por todo o mundo. Outro exemplo poderia ser o movimento Occupy e as suas experiências entre praça e mundo digital, já explorado no trabalho de Manuel Castells sobre os novos movimentos sociais.


Di Cesare argumenta que é possível olhar para a revolta como um fenómeno que nos ajude a compreender os atuais desafios, pontos de tensão, oportunidades de mudança: “Desigualdades abissais, extensão do princípio do endividamento, degradação irreversível do ambiente, incógnitas da aceleração técnica: se olharmos para as condições do mundo, deveríamos ficar surpreendidos com a obediência.” (p.95). A ideia de revolução (à semelhança da tradicional ideia de inovação, pensemos na ‘destruição criativa’ de Schumpeter) pressupõe uma visão e um programa de mudança; já a revolta é mais espontânea, emocional, menos preocupada com os fins (imediatos). Deixando-nos com mais interrogações do que respostas, este é um pequeno livro provocador e espontâneo, que nos permite explorar um dos fenómenos mais importantes da sociedade civil global a partir de um enquadramento teórico-filosófico robusto. Vale a pena a leitura.


As reflexões de Ana Luísa Silva sobre o livro “O Tempo da Revolta”  foram compartilhadas, sob moderação do professor e investigador da Oficina Global, Luís Mah, em uma sessão do Ciclo de Livros do Nosso Tempo, realizado pelo ISEG.

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