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Créditos da imagem: Estúdio Horácio Novais/Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian via Flickr.


Este artigo faz parte de uma série de textos escritos para a disciplina “Social Activism and Global Change” do Mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional do ISEG. Com a proposta de refletir sobre o desenvolvimento e mobilização da sociedade civil, os textos debatem sobre ativismo e os diferentes modelos de atuação da sociedade civil considerando as dinâmicas de poder relacionadas às mudanças propostas bem como o contexto e momentos-chave que possibilitam a mudança. 


Alguns eventos são interessantes para perceber os processos de desenvolvimento e mobilização da sociedade civil. No documentário 12 de Outubro de 1972: O Dia em que Perdemos o Medo”, disponível na RTP Play, é explorada a mobilização que o assassinato do estudante José Ribeiro Santos desencadeou na comunidade estudantil e em toda a sociedade civil portuguesa. Para melhor compreendermos a sucessão de acontecimentos que foram desencadeados por esse dia, proponho abordar o assunto tendo como base a ótica do poder


O dia 12 de outubro de 1972 


50 anos se passaram desde o assassinato de José António Leitão Ribeiro Santos, um membro da Federação Estudantil Marxista-Leninista (FEML), do partido Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP). Este acontecimento teve fortes repercussões, não só na vida de quem presenciou o momento, mas também no desenvolvimento da política e sociedade portuguesa. Este período em Portugal ficou marcado pelo despotismo do Estado Novo. A censura e a repressão à população, aliados a uma guerra barbárica que não tinha fim à vista, criaram as condições ideais para erguer-se uma maior oposição e agitação social. São nestes momentos de transformação social que as universidades e os seus estudantes ganham um papel mais relevante na direção que os seus países tomam. É impossível falar do final do Estado Novo sem olhar para o que ocorreu na tarde de 12 de Outubro de 1972, pois como o jornalista João Isidro (1997) coloca brilhantemente: “O fim do regime começa com o Ribeiro Santos. Não foi a gota de água, foi uma gota de sangue.


Como em tantas outras tardes, estava marcada uma reunião denominada “meeting contra a repressão”. Este encontro ficou agendado para o Instituto Superior de Economia (atualmente o ISEG), mas não chegou a iniciar-se, pois os alunos detiveram um indivíduo que julgavam ser membro da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Depois de muito ponderarem o que fazer, decidiram efetuar uma chamada à DGS (Direção-Geral de Segurança) para que fosse possível identificar o sujeito. Após a chegada dos membros da PIDE a situação escalou quando os mesmos proferiram: “Não é dos nossos, mas vamos levá-lo!”. Tudo isto culminou num confronto físico. Tiros foram disparados, ferindo Ribeiro Santos e José Lamego que tentava imobilizar Gomes da Rocha (agente da PIDE). Por muita que fosse a bravura e bondade dos estudantes universitários em levar Ribeiro Santos para o Hospital de Santa Maria, isto não foi suficiente. Ribeiro Santos sucumbiu à ferida, falecendo.  


Os dias seguintes, especialmente no funeral, demonstraram-se muito calorosos no seio de Lisboa. Uma manifestação com 5.000 pessoas foi reprimida pela Polícia de Segurança Pública (PSP), levando  a um confronto entre a polícia e os manifestantes. Muito interessante foi o papel do próprio povo, que não se demonstrou indiferente, auxiliando os manifestantes. Dois acontecimentos neste evento demonstram essa mesma solidariedade. Aurora Rodrigues (antiga estudante e membro da FEML) relata fugir da polícia e de ter o auxílio de um maquinista que abrandou a marcha do comboio para permitir a passagem dos estudantes, mas que prosseguiu a marcha impedindo a polícia de manter a perseguição. Aurora também relata que várias pessoas, maioritariamente mulheres, vinham à rua prestar auxílio aos feridos, oferecendo água e toalhas. Em específico uma senhora exclamou emocionada: “Ah meu querido filho!”, como se referindo ao próprio Ribeiro Santos. 


A disseminação deste acontecimento fez com que a militância se transformasse ao longo dos  meses seguintes e ajudasse a galvanizar a população. Este assassinato gerou uma onda de revolta, mas também de solidariedade não só por parte dos estudantes e ativistas, como pela própria sociedade civil. Todos entendiam quão grave e simbólica era a morte de um estudante, numa altura em que alcançar o ensino superior era raríssimo. Tal como José Galamba, um dos estudantes presentes, afirma: “A PIDE passou a linha vermelha”


A ótica do poder na sucessão dos acontecimentos 


Durante o ano seguinte, a universidade esteve completamente paralisada, em especial nas faculdades de Direito, Economia e no Instituto Superior Técnico de Lisboa. Várias ações foram feitas para demonstrar a revolta contra o próprio estado, tais como: arremessamento de pedras contra bancos e contra a embaixada americana – aqui podemos ver que os estudantes tinham noção de quem detinha o poder oculto (hidden power); mas também ações de propaganda relâmpago, por parte de antigos camaradas, como a colocação de folhetos ou a Campanha de Outono de 1973, exatamente um ano após o falecimento de José Ribeiro. Sentia-se que o movimento estudantil, por muita opressão que fosse feita, já não conseguiria ser parado, estendendo-se a todas as outras lutas do povo português.  


As brechas do regime estavam cada vez mais expostas e a fadiga social da guerra propulsionou o descontentamento da população; mais notório nas grandes zonas urbanas do litoral, onde estão localizadas as universidades. Era impossível ao Estado Novo conter os gritos de revolta que eram proferidos cada vez mais alto e por mais pessoas. O medo que antes governava a população fugia amedrontado. Sentia-se que quem detinha controlo do poder já não era o Estado Novo, mas sim a população que tinha aprendido a viver num regime controlador. Aqui conseguimos verificar uma mudança nas relações de poder (power-shift)


Menos de ano e meio depois do assassinato, a verdade é que o regime caiu e o 25 de Abril de 1974 marcou uma nova era para a história da democracia portuguesa. Este acontecimento representou uma janela de oportunidade (critical juncture), necessária para libertar o povo português das amarras do Estado Novo. O documentário permite ver que a sociedade civil contém em si as armas para fazer a diferença, sendo capaz de se revoltar e ajudar os seus nos momentos em que é mais preciso. O poder não é inerente a algo ou alguém, o Estado Novo podia ter poder sobre o povo (power over), mas a população é que continha/contém em si o poder para mudar (power to). O historiador ​​​​Fernando Rosas sumariza bem este acontecimento ao dizer no documentário: “O assasinato de Ribeiro Santos é a expressão dramatizada da crise do regime. É um regime que começa a perder o controlo da universidade e que mata. O que significa que esse movimento está radicalizado e mobilizado. O regime está em isolamento e, portanto, o 25 de Abril está em embrião. O que vai acontecer é previsível.”


Para saber mais sobre como a mudança social acontece lê o livro “Onde Começa a Mudança”, de Duncan Green. Através de uma perspetiva que põe em evidência questões sistémicas e relacionadas com o poder, o livro acaba por ser também um guia prático para a mudança. 

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