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As pessoas não querem compaixão, querem respeito. Porque não colocar esse desafio no centro das tomadas de decisão? 


Este artigo foi publicado originalmente pela Open Democracy, uma plataforma online com conteúdos de análise e opinião. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global. A propósito deste tema, vale a pena ler o nosso estudo sobre o Futuro da Cooperação para o Desenvolvimento, publicado em Março deste ano em colaboração com a Plataforma Portuguesa das ONGD.  


“Algumas pessoas simplesmente não querem desenvolver-se”. 


Durante os meus anos de trabalho em cooperação para o desenvolvimento, ouvi profissionais frustrados manifestarem esta opinião abertamente, de forma implícita ou explícita. Parece bizarro, e demonstra uma monumental falta de empatia, mas, curiosamente, esta opinião pode muitas vezes estar correta. Muitas comunidades não querem “desenvolver-se” de acordo com a definição de desenvolvimento de outra pessoa. 


Para compreender esta questão, precisamos de perceber o significado real de ‘desenvolvimento’. Como se manifesta? Desenvolvimento feito por quem, a quem e para quem? 


Ao longo dos anos, as respostas a estas questões têm sido muitas, mas hoje em dia a abordagem mais comum é uma variação daquilo que é captado pelos indicadores de desenvolvimento humano do PNUD. É um tipo de abordagem tradicional, cujo foco na saúde, educação e condições de vida procura “humanizar” a ênfase no crescimento económico que foi dominante nas décadas anteriores. Desde finais dos anos 90, o trabalho de Amartya Sen e outros, que levou à definição de “desenvolvimento como liberdade”, tem encorajado mais nuances e um foco tanto nas capacidades como nos resultados materiais em iniciativas como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU


No entanto, para mim ainda falta qualquer coisa, algo menos tangível e mais difícil de medir, mas inevitavelmente presente em quase todas as atividades de cooperação para o desenvolvimento, desde o projeto mais básico numa aldeia até às disputas políticas nos mais altos escalões das Nações Unidas: dignidade – a convicção de que todas as pessoas são dignas de honra e respeito, independentemente das suas circunstâncias. 


Desenvolvimento ou dignidade? 

Indrajit Roy, um académico da Universidade de York, escreveu uma vez um artigo em que contava a história de uma comunidade de trabalhadores sem terra em Bihar, a parte mais pobre da Índia. Estes trabalhadores são considerados “intocáveis” pelas classes da elite. As suas casas estão sobrelotadas e não têm água nem saneamento, mas os sem terra têm resistido a todas as tentativas de relocalização. Porquê? Não porque não se apercebam da necessidade de mudança – querem casas melhores, mas não a qualquer preço. 


A mudança, diz um dos entrevistados de Roy, é quando podemos olhar os nossos senhorios nos olhos como iguais, e não como inferiores. Roy chamou ao seu artigo “Desenvolvimento como Dignidade”. Os trabalhadores queriam “desenvolvimento”, mas não à custa da sua igualdade e autoestima – o direito inerente a decidir sobre o seu próprio futuro e sobre as suas próprias prioridades. 


Num excelente livro intitulado Time to Listen, um grupo de investigadores liderado por Dayna Brown perguntou aos beneficiários de ajuda ao desenvolvimento sobre as suas experiências e recebeu feedback semelhante dos vários cantos do mundo. Este exemplo provém de um projeto na Bósnia-Herzegovina: 


“Ouvimos pessoas que sentiram que foram tratadas sem muito respeito ou consideração. Tal tratamento foi um insulto à sua dignidade… Algumas pessoas disseram-nos que as agências internacionais afirmam ser “parceiras” dos seus beneficiários ou organizações locais, mas que depois se comportam como proprietários/patrões. Uma representante de uma ONG local contou-nos um episódio em que saiu de uma apresentação feita por uma organização internacional – achou a apresentação feita de uma maneira tão arrogante e condescendentemente que não aguentou ficar”.

Esta é uma experiência que se pode facilmente generalizar. Dignidade é uma palavra usada constantemente em relatórios e discursos sobre ajuda e cooperação, mas que parece tornar-se sempre secundária quando o trabalho começa, ou quando se gasta o dinheiro e se mede o progresso. É um pensamento a posterori, uma coisa que é bom ter, mas que não é essencial. 


E se a dignidade fosse colocada no centro de todo o trabalho de desenvolvimento, desde o planeamento, passando pela implementação, até à avaliação de impacto? Se o fracasso em honrar a dignidade de outras pessoas é frequentemente o que leva ao fracasso dos projetos de desenvolvimento, então colocar a dignidade no centro poderia ser a chave do sucesso. Mas como? 


Colocar a dignidade no centro do desenvolvimento. 

Enquadrar o desenvolvimento como dignidade não dá uma resposta satisfatória a todos os problemas de desenvolvimento, mas acrescenta uma perspectiva valiosa que poderia alterar fundamentalmente as decisões e abordagens. Deixo aqui algumas ideias preliminares sobre a razão pela qual a dignidade é tão importante. 


Em primeiro lugar, colocar a dignidade no centro sugere que os resultados do desenvolvimento são tanto sobre as relações de poder como sobre o tipo de indicadores de desenvolvimento humano que estão consagrados nos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e em quase todos os projetos de desenvolvimento atuais. A sabedoria convencional diz-nos que o empoderamento é um meio para atingir um fim. Quando uma comunidade é “empoderada”, pode alcançar os seus verdadeiros objetivos, que se relacionam com benefícios materiais: melhor saúde, alimentação e educação, e rendimentos mais elevados. 


Mas e se for ao contrário? E se a saúde, a educação e os rendimentos forem os meios para os verdadeiros fins do trabalho de desenvolvimento, tais como a liderança, a autonomia, a dignidade e a reconfiguração do poder, a igualdade e a voz? Isso significaria fazer perguntas totalmente diferentes no início de qualquer projeto ou processo de tomada de decisão, e definir diferentes estratégias de mudança. 


Por exemplo, uma vez trabalhei com comunidades afro-colombianas deslocadas no noroeste da Colômbia, que faziam campanha para conseguirem regressar às suas remotas terras de origem, mesmo sabendo que a escolaridade poderia ser mais difícil e os rendimentos mais baixos do que nos locais urbanos para onde tinham sido transferidas. No entanto, decidiram dar prioridade à autonomia e ação política associadas ao seu lugar no mundo, em detrimento de indicadores que se encaixassem melhor numa tabela do PNUD ou do Banco Mundial. 


Em segundo lugar, uma abordagem centrada na dignidade implica focar tanto no processo como nos resultados, tanto nos “meios” como nos “fins”, tanto no “como” como no “o quê” (algo que Jennifer Lentfer sublinha no seu blogue How Matters). As decisões tomadas pela comunidade de pessoas sem terra estudada por Roy fazem pouco sentido em termos económicos tradicionais, segundo os quais as pessoas são efetivamente ‘porta-moedas ambulantes’. No entanto, cada vez mais, as comunidades, os movimentos sociais e os políticos reconhecem que, enquanto a maioria de nós procura, naturalmente, segurança material, poucas pessoas agem unicamente a esse nível. 


Algumas coisas são vistas como mais importantes do que o dinheiro e o bem-estar material – como a dignidade. É por isso que as pessoas deixam os empregos onde estão a ser maltratadas, apesar do corte que levam nos seus rendimentos, ou tomam uma posição contra o racismo e a injustiça, plenamente conscientes das possíveis consequências para si próprias. Foi por isso que o representante da ONG saiu daquela apresentação de ajuda para o desenvolvimento na Bósnia-Herzegovina. 


O leitor pode pensar que seria difícil medir a “dignidade” de um processo, mas embora possa não ser óbvio como a dignidade se encaixa numa folha de cálculo, ela é pelo menos um atributo que é eminentemente perceptível. Ninguém percebe realmente o desenvolvimento. Todos percebem a dignidade. A dignidade é talvez a única coisa que os seres humanos em todo o mundo, em múltiplos contextos diferentes, reconhecem instintivamente e ambicionam. A boa notícia é que interagir com as pessoas de uma forma digna tornará mais provável que os resultados materiais de qualquer projeto sejam realizados com sucesso – o que seria mutuamente vantajoso.   


Em terceiro lugar, colocar a dignidade no centro significaria o fim de categorias como “desenvolvido” e “em desenvolvimento”. Durante demasiado tempo, aqueles que trabalham em ‘desenvolvimento’ difundiram uma divisão binária entre países que se dizem ‘desenvolvidos’ e aqueles que supostamente estão ‘em processo de convergência’. Esta atitude, que tem razões firmemente enraizadas na era colonial, pode finalmente estar a desaparecer. 


Uma vez que a dignidade e a ausência dela são ideias e experiências universais aplicáveis em todo o mundo, tais binários não têm qualquer significado. Por exemplo, uma organização chamada ATD 4th World trabalha em conjunto com comunidades pobres de todo o mundo usando exatamente a mesma filosofia: “A pobreza não pode ser resolvida através da caridade”, afirmam, “e a ajuda não deve destruir a dignidade nem a criatividade dos beneficiários”. 


No Reino Unido, uma deputada britânica chamada Alison McGovern escreveu sobre o valor de colocar o conceito de dignidade no centro da política britânica. “Em vez de ver a melhoria dos serviços públicos apenas através do prisma do aumento dos níveis de despesa”, argumenta, “um Estado que desse prioridade à dignidade repensaria a forma como os políticos se relacionam com os funcionários públicos, e como os funcionários públicos se relacionam com o povo”. 


Em quarto lugar, a abordagem que recomendo inverteria a falácia de que o “desenvolvimento” tem um ponto final. A luta pela dignidade é intemporal, como o demonstra o facto de a indignidade humana existir em todas as sociedades. Esta constatação deveria transformar as nossas ambições enquanto comunidade internacional, através de ações enquadradas em torno de uma solidariedade a longo prazo, que substitua gradualmente os atos tradicionais de caridade ou de ajuda externa a curto prazo. 


Progressivamente, são cada vez mais aqueles que promovem a linguagem da dignidade. Desde que, há alguns anos, sugeri pela primeira vez que esta ideia se poderia tornar um conceito de enquadramento alternativo para o desenvolvimento, académicos, ativistas, líderes comunitários e profissionais de desenvolvimento de todo o mundo entraram em contacto comigo, reconhecendo nesta palavra um caminho que vai para além dos aspetos contraditórios e muitas vezes prejudiciais do discurso e das práticas de desenvolvimento de hoje. Nomeadamente, este pequeno livro de Barry Knight e Chandrika Sahai foi inspirado por essas sementes. 


Mas ainda é cedo. O que realmente precisamos é de um movimento para promover a dignidade em toda a comunidade ligada à cooperação internacional para o desenvolvimento, apoiado por mais do que boas intenções. Espero que se junte a ele. 


Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado pela Open Democracy

2 comentários

  1. Bom texto. Inscreve-se na linha da obra de Amaryta Sen e também do livro “E se a Africa recusasse o desenvolvimento?” . de Axelle Kabou. A dignidade e a liberdade são valores / conceitos configuradores de todas as ações mas são muito abstratos. Não acredito na ideia de que todos sabemos o que é dignidade instintivamente como este autor parece dizer. E muito menos na articulação fácil entre esse conceito e a prática concreta da Cooperação Internacional. E os exemplos como o autor apresenta são os extremos da distribuição. O grosso das ações de Cooperação não tem nada a ver com esses exemplos.

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