Este artigo foi publicado originalmente pelo The New Humanitarian, uma agência de notícias especializada em reportar crises humanitárias. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global. Créditos da imagem: União Europeia 2020, D. Membreño.
Numa altura em que as necessidades humanitárias disparam, e enquanto outros governos estão a cortar os orçamentos de ajuda pública ao desenvolvimento, a União Europeia acaba de aumentar a sua ajuda humanitária em 60%, tornando-se assim no maior doador humanitário do mundo.
Quando a UE anunciou a sua ambiciosa nova estratégia para a ajuda humanitária, o The New Humanitarian (TNH) conversou com Janez Lenarčič, que lidera a resposta de emergência na Direção-Geral da Proteção Civil e das Operações de Ajuda Humanitária Europeias, a DG ECHO, para explorar o pensamento por detrás desta decisão e descobrir como o bloco pretende enfrentar os desafios atualmente em tendência crescente.
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“Este não é o momento de cortar os orçamentos de ajuda humanitária, é o momento de aumentá-los”, disse Lenarčič, o comissário da UE para a gestão de crises, ao TNH.
Em comparação com o ano passado, há 40% mais pessoas a precisar de assistência, principalmente devido aos impactos da pandemia, mas a base de doadores humanitários continua a ser pequena. No ano passado, segundo os relatórios da UE, os 10 principais doadores a nível mundial representaram 83% do financiamento humanitário total.
“Este não é o momento de cortar os orçamentos de ajuda humanitária, é o momento de aumentá-los”, disse Lenarčič, o comissário da UE para a gestão de crises, ao TNH.
Entre outras coisas, a nova estratégia da UE – anunciada na quarta-feira [10 março 2020] em Bruxelas – procura reafirmar os princípios humanitários, observando que a erosão do direito humanitário internacional tornou mais difícil a prestação de ajuda humanitária. Propõe igualmente aumentar a base de recursos e chegar às raízes dos problemas, incluindo as alterações climáticas. “Se não intensificarmos a nossa ação nesta década, o impacto poderá ser esmagador”, advertiu o comissário. E sobre as migrações, Lenarčič foi claro: aqueles que têm direito a proteção internacional devem ser autorizados a permanecer.
No contexto desta ampla discussão, o TNH entrevistou Lenarčič sobre a nova estratégia, mas também sobre o nacionalismo nas vacinas, as muito criticadas políticas de migração europeias, a descolonização da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), e o que não o deixa dormir de noite.
(Esta entrevista foi originalmente editada para maior clareza).
TNH: O título do novo conjunto de prioridades da UE é “Novos desafios, mesmos princípios”. Na sua opinião, como mudou o panorama humanitário desde a última estratégia da UE, que data de 2015? Fale-me dos novos desafios a que a política se propõe dar resposta.
Lenarčič: A situação humanitária agravou-se, de forma dramática. Tem havido um aumento constante das necessidades, principalmente devido à proliferação de conflitos. No ano passado, principalmente devido à pandemia, mas também a outros fatores como as alterações climáticas e a degradação ambiental, registámos um pico importante nas necessidades humanitárias. E esta política dá-nos uma perspetiva de como a UE pretende abordar esta situação sem precedentes.
Queremos sublinhar que os princípios fundamentais que regem a ação humanitária continuam a ser tão relevantes como sempre. E estamos determinados a reafirmá-los e a dar à União Europeia mais recursos para reforçar o respeito pelo direito internacional humanitário e permitir a ação humanitária.
O mundo humanitário está a tornar-se muito mais difícil e perigoso. Temos testemunhado a constante erosão do cumprimento do direito internacional humanitário, e isso afeta a capacidade de ação dos nossos parceiros humanitários.
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THN: A DG ECHO anunciou no início deste ano um aumento de 60% da ajuda humanitária, e em 2021 representa quase 40% da assistência humanitária global. Até que ponto sente que a UE está a carregar o fardo mais pesado? O que diz a outros doadores, como o Reino Unido, que reduziu recentemente o seu orçamento de APD, e reduziu de forma drástica o orçamento para lugares como o Iémen?
Lenarčič: Se tal momento alguma vez existiu, este não é certamente o momento de cortar o orçamento da ajuda; este é o momento de o aumentar. Aumentámos o orçamento da ajuda humanitária da União Europeia porque queremos mostrar liderança. A liderança baseia-se mais em atos do que em palavras, e queremos mostrar isso através do exemplo.
Já somos, em conjunto com os Estados Membros da União Europeia, o doador humanitário número um no mundo. Isto apesar de o Reino Unido nos ter deixado. E isso foi uma grande perda para a União Europeia porque o Reino Unido tem sido tradicionalmente um dos doadores humanitários mais generosos.
É com grande pesar que tomei nota da decisão das autoridades britânicas de reduzir o orçamento de APD. E espero que esta decisão ainda possa ser revertida. Como disse, este não é o momento de cortar os orçamentos de ajuda humanitária, é o momento de os aumentar.
TNH: Com mais pessoas necessitadas do que nunca, e face a uma persistente lacuna de financiamento, o atual modelo de financiamento parece cada vez mais insustentável. Enquanto diretor de um dos maiores doadores mundiais, como está a pensar fazer as coisas de forma diferente?
Lenarčič: Há várias formas de tentarmos colmatar o défice de financiamento. Uma delas é utilizar os fundos que temos de uma forma mais eficaz, mais eficiente. Temos de assegurar que o maior quinhão possível da ajuda mútua chegue às pessoas necessitadas, por isso estamos a tentar reduzir as despesas fixas. Queremos aumentar o âmbito da assistência através de transferências monetárias porque é muito eficaz, muito eficiente, e também aumenta a dignidade dos beneficiários.
Queremos alargar a base de doadores. Atualmente, uma percentagem esmagadora de ajuda humanitária é fornecida por um punhado de países. Se olharmos globalmente, são basicamente os Estados Unidos da América, a Alemanha e a Comissão Europeia que contribuem cerca de 60% [do total]. Queremos que outros contribuam. Há doadores que poderiam fazer muito mais.
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É com grande pesar que tomei nota da decisão das autoridades britânicas de reduzir o seu orçamento de APD. E espero que esta decisão ainda possa ser revertida.
Vamos começar pela União Europeia, porque na própria União Europeia também temos um desequilíbrio – a maior parte da ajuda humanitária é também fornecida por uma fração dos Estados Membros. Em conjunto com a Comissão Europeia, quatro outros Estados-membros contribuem com 90% da ajuda humanitária europeia. Penso que deveríamos distribuir isto de forma mais equilibrada. Outra forma é tentar reduzir as necessidades humanitárias. A ajuda humanitária por si só não nos vai dar soluções. A ajuda humanitária é uma ajuda de emergência. Não resolve a crise, apenas alivia o sofrimento da população.
Por isso, precisamos de analisar as causas profundas, as raízes, de cada crise humanitária, e precisamos de encontrar soluções a longo prazo. Para isso, gostaríamos de trabalhar mais estreitamente com os atores do desenvolvimento e da paz e segurança. Mesmo que as causas sejam económicas ou sociais, precisamos de nos ocupar delas, em vez de continuar a prestar ajuda material durante anos e anos.
TNH: Apesar de anos de assistência humanitária na Síria e no Iémen, a situação permanece em grande medida inalterada. Como é que a UE está a trabalhar concretamente com os parceiros de desenvolvimento e de construção da paz para que possamos ocupar-nos das causas profundas e responder às necessidades a longo prazo?
Lenarčič: Há algum tempo, lançámos seis projetos-piloto para o triplo nexo [ajuda humanitária -cooperação para o desenvolvimento – consolidação da paz]. Há alguns resultados positivos, e precisamos de alargar este trabalho. Vamos preparar a nossa estratégia para o Sahel, e esta será uma oportunidade para pressionar no sentido de um envolvimento mais forte dos parceiros de desenvolvimento. Se pensarmos no Sahel, não nos ocupámos suficientemente das causas profundas. Há oito anos que a comunidade humanitária europeia e internacional está intensamente envolvida na região, mas não vemos resultados. Por isso, precisamos de ajustar a nossa abordagem de forma a prestar atenção à raiz dos problemas para evitar uma maior deterioração, esperando que a região se encaminhe numa direção mais positiva.
TNH: O acesso à vacina contra a Covid-19 continua a ser principalmente um privilégio dos países ricos. Ao mesmo tempo, a COVAX – a iniciativa global para assegurar um acesso rápido e equitativo às vacinas contra a Covid-19 – continua subfinanciada. O que está a Comissão Europeia a fazer para assegurar uma maior equidade na vacinação e para evitar aquilo a que o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou um “catastrófico fracasso moral global”?
Lenarčič: Quando a União Europeia iniciou as suas negociações com os fabricantes de vacinas, anunciou ao mesmo tempo uma das maiores contribuições para a COVAX. Assim, desde o início, a União Europeia não esqueceu as necessidades dos outros.
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(…) precisamos de analisar as causas profundas, as raízes, de cada crise humanitária, e precisamos de encontrar soluções a longo prazo. Para isso, gostaríamos de trabalhar mais estreitamente com os atores do desenvolvimento e da paz e segurança. Mesmo que as causas sejam económicas ou sociais, precisamos de nos ocupar delas, em vez de continuar a prestar ajuda material durante anos e anos.
Devo acrescentar que o desenvolvimento de vacinas tem sido apoiado em grande medida por fundos europeus. Portanto, todas as vacinas que existem atualmente, com poucas exceções, foram desenvolvidas com um apoio financeiro substancial da União Europeia. A Europa deverá ser a última a ser acusada de nacionalismo em relação às vacinas. Além disso, a maioria das vacinas atualmente em circulação, inclusive através da COVAX, são fabricadas na Europa.
TNH: Diz-se que as alterações climáticas são a maior ameaça que o mundo enfrenta, a um nível nunca antes visto. A nova estratégia da UE enfatiza a adaptação às alterações climáticas e as considerações ambientais, áreas historicamente negligenciadas pelos humanitários. Acha que o sistema humanitário está equipado para responder à crise climática?
Lenarčič: Os atores humanitários já estão a lidar com o impacto do clima. Estou confiante de que seremos capazes de ultrapassar a pandemia. Mas o impacto das alterações climáticas vai permanecer connosco durante anos. Receio que se não intensificarmos a nossa ação nesta década, o impacto poderá ser devastador.
O Relatório da IFRC (Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho) sobre as Catástrofes Mundiais diz que nenhum dos 20 países mais vulneráveis se encontra entre os 20 maiores beneficiários per capita de financiamento para a adaptação ao clima. Assim, não só não estamos a alocar fundos suficientes, como os fundos que estão a ser atribuídos para a adaptação às alterações climáticas não estão a ir para os lugares certos. É por isso que abordamos as alterações climáticas e o seu impacto humanitário na nossa estratégia.
TNH: A Comissão da UE gastou milhões de euros em assistência humanitária aos refugiados nas ilhas gregas – incluindo cinco milhões de euros na sequência do incêndio de Moria em setembro passado. No entanto, existe uma crise humanitária persistente nas ilhas, com campos sobrelotados, com falta de condições de higiene e de manutenção, e muitos se interrogam sobre o paradeiro desse financiamento. O que está a Comissão Europeia a fazer para assegurar que os campos que estão a ser construídos nas ilhas com o apoio da Comissão estejam à altura do compromisso “mais Morias não”?
Lenarčič: Sou responsável pelo mecanismo de proteção civil, e este foi ativado após o incêndio de Moria. Conseguimos prestar alívio de emergência através de instalações de abrigo temporário para aquelas pessoas que, durante a noite, ficaram sem um teto sobre a cabeça. Mas isso é apenas assistência de emergência. A situação dos migrantes e refugiados nas ilhas gregas exige uma abordagem mais abrangente.
Em última análise, é da responsabilidade das autoridades gregas. Mas é claro que, no espírito da solidariedade europeia, a Comissão dispõe de recursos consideráveis para ajudar a resolver esta questão. A situação continua a ser insatisfatória, para dizer o mínimo. Penso que é outro sintoma que mostra que a União Europeia precisa de pôr em prática uma política migratória global que se baseie na solidariedade e na proteção dos migrantes e refugiados.
O chamado pacto migratório representa o melhor compromisso possível de opiniões muito divergentes entre os estados membros da UE sobre esta questão, e espero que seja adotado em breve.
TNH: As organizações de defesa dos Direitos Humanos criticaram os países da UE, dizendo que estes viraram as costas aos requerentes de asilo e aos migrantes. Será isto inconsistente com os princípios humanitários pelos quais a vossa nova estratégia diz lutar?
Lenarčič: Dentro da União Europeia, não temos um mandato humanitário, mas tentamos abordar o aspeto humanitário da migração. Evidentemente, precisamos da cooperação dos Estados Membros, pois são eles que, em última análise, decidem quem será admitido no território da União [Europeia] e quem não o será.
Gostaria de salientar que estou firmemente convencido de que a União Europeia deve permanecer aberta a todos aqueles que necessitam de proteção internacional, enquanto, obviamente, aqueles que não têm direito a proteção internacional não podem permanecer na Europa. É assim que as coisas são. Penso que a última proposta da Comissão tenta resolver estas dificuldades da melhor forma possível. Continuo a esperar que os Estados membros possam chegar a acordo.
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TNH: Reformas como o Grand Bargain [1] tentaram obter mais financiamento para as ONG locais, mas muitos doadores, como a DG ECHO, enfrentam barreiras legais ao financiamento direto de grupos locais, e o financiamento desses atores permanece hoje nos dois por cento do financiamento humanitário global. Como é que a DG ECHO vai a ultrapassar essas barreiras legais para colocar mais dinheiro nas mãos de organizações locais?
Lenarčič: Tem razão quando diz que a ajuda humanitária da União Europeia só pode ser prestada a parceiros humanitários sediados na União Europeia, para além das agências das Nações Unidas. No entanto, isto não constitui uma barreira à localização. Levamos a sério os nossos compromissos no âmbito do Grand Bargain, e existem formas de apoiar os atores locais que utilizamos.
Em primeiro lugar, um grande número dos nossos parceiros humanitários – especialmente as ONG, ONG internacionais – têm filiais locais, pelo que não há qualquer problema com a localização. Em segundo lugar, quando não é esse o caso, podemos utilizar os fundos comuns para o país em questão, geralmente geridos pelas Nações Unidas.
O que é de facto a maior barreira à localização é a capacidade dos atores locais. Na maioria das vezes, as organizações locais não têm capacidade para cumprir todos os critérios em matéria de responsabilização, transparência, boa gestão financeira – critérios aos quais estamos vinculados devido às nossas autoridades orçamentais, e devido ao Tribunal de Contas Europeu, que exigirá uma gestão cuidadosa e responsável dos recursos, o que é apenas natural porque se trata do dinheiro dos contribuintes europeus.
Levamos a sério os nossos compromissos no âmbito do Grand Bargain. Por outro lado, insistimos que este tem um duplo sentido. Se, por um lado, estamos empenhados – e estamos, genuinamente, numa maior localização através de um financiamento mais flexível – numa programação plurianual e assim por diante, em troca, esperamos uma maior responsabilização, maior transparência e melhor visibilidade para o doador. Devemos aos contribuintes da União Europeia que o mundo saiba onde estão a ser utilizados os seus fundos.
TNH: O movimento “Black Lives Matter” gerou apelos à descolonização da APD. Os ouvintes do podcast “Rethinking Humanitarianism” enviaram comentários dizendo que acreditam que os doadores perpetuaram uma abordagem colonial, dando prioridade às organizações que agem de forma colonial. Quais são os debates que a UE está a ter internamente para assegurar que estes padrões coloniais sejam interrompidos?
Lenarčič: Em primeiro lugar, para a União Europeia, a ajuda humanitária é uma ajuda de princípios. Fornecemos uma ferramenta onde ela é necessária. E, ao fazê-lo, ignoramos todas as considerações políticas, económicas, de segurança, ou neocoloniais. Tudo isso é ignorado. O único critério para a nossa ajuda humanitária europeia são as necessidades. Se houver uma necessidade, tentamos dar ajuda.
Fazemo-lo através dos nossos parceiros de confiança, as agências das Nações Unidas. A ONU é um símbolo de descolonização. Não é fácil tornar-se um parceiro da União Europeia em ajuda humanitária. Aqueles que gostariam de o ser… precisam de responder aos critérios. Temos um processo rigoroso de verificação de parceiros, de modo a garantir que estes assumem, na prática, um compromisso com os princípios humanitários. Assim, não se pode imaginar uma situação mais longe da mentalidade colonial do que o que fazemos como União Europeia em ajuda humanitária.
TNH: Falámos de alterações climáticas, migrações, a situação do financiamento. De tudo o que passa pela sua mesa de trabalho, o que não o deixa dormir à noite?
Lenarčič: Perguntaram-me no início do meu mandato o que gostaria de ver no final do mesmo. A minha resposta é que gostaria de ver menos necessidades humanitárias, menos crises humanitárias, menos trabalho para o meu sucessor. E, infelizmente, as tendências até agora vão na direção oposta. Ainda há tempo, pelo que não perco a esperança de que na parte restante do meu mandato possamos assistir a uma inversão das tendências atuais.
TNH: E onde vê uma evolução positiva na resposta a emergências? O que lhe dá esperança?
O que me dá esperança é o enorme apoio dos cidadãos europeus ao que fazemos. Mais de 90% dos cidadãos da União Europeia apoiam a ação humanitária, acreditam que é importante, e acreditam que é uma demonstração da solidariedade da UE.
[1] O Grand Bargain, lançado durante o World Humanitarian Summit em Istanbul, Maio de 2016, é um acordo inédito entre alguns dos maiores doadores e organizações humanitárias que se compromenteram a fazer chegar mais meios às mãos daqueles que enfrentam maiores necessidades e a melhorar a eficácia e eficiência da ação humanitária. Mais informações aqui.
Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado no The New Humanitarian.