Imagem: Aarush Kochar via Unsplash.
Ibrahim Kamara tem um sonho modesto para a ONG de ajuda humanitária que dirige em Serra Leoa: quer encontrar um doador que o ajude a contratar funcionários e pagar as contas.
“Se eu tivesse essa oportunidade, seria como um salvador do céu”, disse Kamara, uma ex-criança-soldado que fundou o Programa de Resposta Adaptativa Safe Haven, ou SHARP, para ajudar comunidades de baixo rendimento propensas a inundações na capital, Freetown.
A rede de voluntários monitoriza alertas meteorológicos e evacua famílias vulneráveis, numa cidade onde as autoridades locais dizem que as alterações climáticas estão a aumentar a frequência de inundações e deslizamentos de terra. Fornece abrigo, alimentos, roupas e outros itens essenciais para as famílias afetadas.
Mas em todos os seus anos de angariação de fundos, o SHARP nunca recebeu dinheiro para pagar custos administrativos, como despesas de escritório ou salários, por seu trabalho de resposta a desastres. A ONG depende fortemente do trabalho voluntário e arrecada fundos nos bairros que atua, bem como entre apoiadores nos Estados Unidos.
Os doadores das organizações humanitárias têm fortes restrições ao financiamento de despesas gerais, e isto mantém grupos da linha de frente como o SHARP pequenos e lutando para se manterem ativos.
Oaganizações de monitoramento como Charity Watch têm preferência por despesas gerais mínimas. O seu sistema de classificação dá notas altas para despesas gerais baixas – o dinheiro da ajuda deve ser gasto em projetos e ajuda, não em salários para as pessoas que implementam o projeto, justificam. Mas as restrições têm um impacto desigual em pequenas ONG locais, de Freetown a Lagos, ou Camarões à Malásia.
Sem financiamento suficiente para despesas gerais, as pequenas ONG têm dificuldades para contratar ou reter funcionários, ou pagar as contas. Isso pode até expô-los a mais riscos, já que as ONG locais não têm financiamento para pagar pelo treinamento dos funcionários e protocolos de segurança em ambientes de alto risco.
Alguns analistas chamam-lhe um “ciclo de fome”: os financiamentos dão às ONG locais apenas o suficiente para implementar projetos de curto prazo, mas não o suficiente para investir em melhorar e se tornar financeiramente independentes. É um dos muitos problemas sistémicos que agravam os desequilíbrios de poder de longa data e a continuação dos legados coloniais na ajuda internacional, onde o poder está entrincheirado nas mãos de doadores tradicionais e grandes agências de ajuda em vez de nas equipas de resposta da linha da frente.
Entre angariação de fundos, planeamento de orçamentos e networking, Kamara passa um tempo significativo apenas discutindo com voluntários, que vêm das mesmas comunidades em dificuldades que estão tentando ajudar: “Passo muitas horas ao telefone”, disse ele. Você sabe, implorando: ‘Por favor, você precisa vir e ajudar; se você não vier, haveá um problema'”.
O paradoxo do sistema
O paradoxo do financiamento das despesas gerias do setor humanitário espalha-se por todo o sistema.
Os doadores governamentais atribuem a maior parte de seu financiamento humanitário a agências da ONU e ONG internacionais, que repassam parte desse financiamento para ONG nacionais e locais. Pequenas ONG de base, organizações da sociedade civil, grupos comunitários – com pouca ou nenhuma equipa para solicitar, monitorar ou apresentar relatórios sobre subvenções – veem a menor parte do dinnheiro.
O sistema depende de agências da ONU e ONG internacionais para repassar partes equitativas do seu financiamento, já que o financiamento de doadores governamentais raramente vai diretamente para ONGs locais.
Num inquérito de 2022 com dezenas de ONG em todo o mundo, dois terços disseram que os seus financiadores deram “menos do que seria um parcela justa” dos custos administrativos. Metade afirmou ter reservas capazes de manter suas organizações em funcionamento por apenas 21 dias ou menos.
Analistas dizem que a maioria dos doadores reconhece o problema. Nos últimos anos, mais agências da ONU e ONG internacionais mudaram sua política para permitir explicitamente o financiamento para despesas gerais.
A legislação recentemente aprovada nos Estados Unidos aumenta a percentagem das subvenções que as entidades locais podem gastar em despesas gerais de 10% para 15% (um estudo sugeriu que os custos administrativos reais das organizações oscilavam em torno de 31%). O braço de ajuda humanitária da UE, o ECHO, criou diretrizes no ano passado pedindo que “um montante adequado e equitativo de custos indiretos” seja repassado às ONG locais.
Mas a mudança tem demorado a acontecer. Algumas das ONG mais pequenas e com menor poder de negociação – mas com profunda compreensão das pessoas que ajudam – continuam a não dispor de financiamento para despesas gerais.
Sally Mboumien, diretora da COMAGEND, uma pequena ONG de igualdade de género nos Camarões, muitas vezes experimenta o problema das restrições das políticas financeiras dos doadores.
“Tenho dois projetos neste momento dentro da nossa organização que não pagam por espaço de escritório”, disse Mboumien, rindo: “Como eles esperam que trabalhemos? Debaixo de uma árvore?”
As restrições gerais forçaram ela e outros funcionários a doar parte de seus pequenos salários – arrecadados por algumas redes feministas – para pagar o aluguer do escritório, eletricidade e internet.
“Tudo o que é visto como salário é um problema. No fim das contas, é impossível para as pessoas continurem a ser voluntárias.”
“A maioria de nós trabalha porque somos apaixonados pelo trabalho que fazemos. Mas isso não significa que não reclamamos”, disse ela, “Geralmente, minha vida como mãe não é a vida que uma criança deveria ter de sua mãe. Porque eu quase não passo tempo de qualidade com meus filhos.”
A relutância dos doadores em pagar despesas gerais prejudica os programas que desejam patrocinar, disse Mahi Ramakrishnan, diretor da Beyond Borders Malaysia, uma ONG de apoio a refugiados em Kuala Lumpur.
Por exemplo, os doadores podem estar dispostos a pagar pelo aluguer de equipamentos utilizados por voluntários, mas não pelos salários necessários para pagar os terapeutas que apoiam os refugiados.
“Qualquer coisa que seja vista como salário é um problema”, disse Ramakrishnan, “No final do dia, é impossível para as pessoas continuarem se voluntariando. Então, eu realmente não entendo por que as organizações doadoras têm um problema tão grande com o salário.”
Além disso, muitas das organizações comunitárias lideradas por refugiados e com as quais Ramakrishnan tem parceria enfrentam um paradoxo frustrante: os doadores querem ver contabilidade profissional, relatórios e uma presença on-line – mas muitas vezes não concedem fundos para cobrir esses custos.
Como resultado, os doadores preferem ONG com infraestrutura desenvolvida – muitas vezes de escala nacional ou grandes ONG internacionais – em oposição aos grupos liderados por refugiados que têm um conhecimento mais profundo de seus beneficiários.
Um campo de treinamento perpétuo
Enquanto pequenas ONG locais lutam para manter as luzes acesas, muitas vezes acabam perdendo funcionários para as grandes ONG internacionais porque não conseguem competir com salários e benefícios maiores.
Essa dinâmica permite que grupos internacionais escolham os melhores talentos locais.
“Algumas organizações têm até medo de enviar seus colegas para participar em conferências”, disse Victoria Ibezim-Ohaeri, diretora executiva da Spaces for Change, uma ONG de defesa social com sede em Lagos, Nigéria. ”Porque você pode ir lá, falar com eloquência, articular questões e, e a próxima coisa quando alguém lhe dá um cartão de cortesia é: ‘Por favor, me ligue’”.
“Acho que é explorador estar no mesmo setor em que algumas pessoas são os peixes e outras os caçadores.”
A rotação constante de pessoal está a gerar esgotamento: “As organizações locais se tornam um campo de formação perpétuo”, disse Ibezim-Ohaeri. Perpetuamente, estão a treinar alguém que, quando chega a hora de colher os retornos do investimento, vai embora.”
Com o tempo, ela espera que o ciclo contínuo de perda de funcionários para grupos internacionais aprofunde o desequilíbrio de poder entre organizações internacionais e locais. ”Acho que é explorador estar no mesmo setor em que algumas pessoas são os peixes e outras os caçadores”, disse ela, “É um espaço insalubre. Naturalmente, isso envenena o setor.”
As restrições de financiamento para despesas gerais dificultam a capacidade das organizações locais de investir em funcionários: “É como qualquer outro negócio: se não investir em algo, dificilmente vai colher os frutos disso”, disse Ibezim-Ohaeri.
Para Kamara, na Serra Leoa, a carga de trabalho não remunerada está a cobrar seu preço. Ele não recebe um salário de sua organização de ajuda humanitária; e sustenta sua jovem família trabalhando como web designer à noite e nos fins de semana.
Sem o SHARP, acredita Kamara, sua comunidade de baixo rendimento em Freetown seria negligenciada pelos governos locais e ONG maiores.
O SHARP tem contado principalmente com crowdfunding direto. No ano passado, a ONG recebeu sua primeira doação institucional de US$ 5.000, que Kamara espera que seja a primeira de muitas.
No entanto, ele experimentou rapidamente os limites das convenções de doadores: a subvençaõ é totalmente restrita aos custos diretos do projeto.
“Podemos um dia, num futuro próximo, ser capazes de conseguir alguém que considere… dar-nos uma subvenção que cobrirá os salários”, disse.
Editado por Irwin Loy.
Este artigo foi publicado originalmente no blogue The New Humanitarian. Leia o artigo em inglês aqui. A traduação é de responsabilidade da Oficina Global.