AtivismoDescolonizar o Desenvolvimento

Imagem: Captura do clipe de ‘Monsters You Made’ 


A canção ‘Monsters You Made’ de Burna Boy leva o debate sobre a necessidade de descolonização para fora da torre de marfim e para a esfera pública. 


O reverendo Otis Moss Jr observa que “a música do movimento é a linguagem da libertação”. Em África e na diáspora, a música tem sido fundamental nas lutas pela libertação – para expressar e destacar a injustiça, a desigualdade, o racismo e a opressão de formas que os políticos, académicos e outros comentadores sociais muitas vezes têm dificuldade. 


Em “Monsters You Made”, uma canção do seu álbum de 2020, Twice as Tall, o cantor nigeriano Burna Boy destaca os desafios socioeconómicos, políticos e educacionais da Nigéria, passados e presentes. A relevância da canção vai além da Nigéria e fala da marginalização, das injustiças, das falhas de governação e da corrupção após a independência em muitos países do continente africano. 


Escrevemos um capítulo sobre “Monsters You Made” no livro Decolonizing African Studies Pedagogies: Knowledge Production, Epistemic Imperialism and Black Agency (Descolonizando Pedagogias de Estudos Africanos: Produção de Conhecimento, Imperialismo Epistêmico e Agência Negra) (Palgrave Macmillan, 2023). Intitulado “Dem European Teachings in My African School: Unpacking Coloniality and Eurocentric Hegemony in African Education Throughs Burna Boy’s ‘Monsters You Made’” (Ensinamentos Europeus na Minha Escola Africana: Desvendando a Colonialidade e a Hegemonia Eurocêntrica na Educação Africana através de ‘Monsters You Made’ de Burna Boy), o capítulo apresenta abordagens críticas sobre os fracassos pós-independência, a colonialidade e o eurocentrismo na educação africana. 


Burna Boy segue os passos de Fela Kuti, outro músico nigeriano. Tal como Fela, Burna Boy canta quase exclusivamente em inglês pidgin para colocar em primeiro plano a experiência cultural do povo nigeriano e criticar noções de linguagem centradas na Europa. 


Burna Boy cresceu em Port Harcourt, no sul da Nigéria, na região do Delta do Níger, que tem passado por décadas de agitação, abusos dos direitos humanos e conflitos após o fim do domínio colonial – em parte ligados à degradação ambiental e à exploração das reservas de petróleo da região em benefício das empresas petrolíferas estrangeiras e das elites políticas da Nigéria. Durante décadas, o Delta do Níger tem sido uma “zona de sacrifício” – um local fortemente explorado e contaminado pela indústria petrolífera, com a permissão de sucessivos governos nigerianos. 


Burna Boy observa que a música “vem de muita raiva e dor, e de ter que testemunhar em primeira mão o que meu povo passa e como meu povo se vê”. Ele sublinha que as elites políticas não conseguiram desenvolver o país e melhorar a vida das pessoas. Por causa disso, as comunidades recorrem com frequência a protestos e rebeliões. Isto também é destacado por Ebikabowei “Boyloaf” Victor-Ben, antigo comandante do Movimento para a Emancipação do Delta do Níger, cujo curto monólogo abre a canção: “Se o governo recusar (sic) desenvolver a região e continuar (sic ) a marginalização e a injustiça, a juventude ou as próximas pessoas que virão depois de nós, penso eu, serão mais brutais do que aquilo que fizemos.” 


Burna Boy salienta que a corrupção e o nepotismo na Nigéria, combinados com a marginalização de muitas regiões do país, não deixam às pessoas outra escolha senão protestar e rebelar-se. Em vez de abordar as falhas de governação, os governos pós-independência culpam as comunidades que resistem à marginalização e à negligência pela instabilidade. Burna Boy canta: 


É como se os chefes de estado/Não compreendessem o ódio/Que os oprimidos geram/Quando trabalham como escravos/Para conseguir um salário mínimo/Você os culpa/Pela raiva e fúria/Coloca-os algemados e acorrentados/Por causa do que eles se tornaram/Nós somos os monstros que você criou. 


A negligência das massas por parte das elites pós-independência não é exclusiva da Nigéria e tem sido uma característica da governação em todo o continente africano. Franz Fanon escreveu sobre a “preguiça intelectual” entre os políticos africanos em Os Condenados da Terra, ligando isto ao fracasso na transformação de estruturas e sistemas pós-coloniais opressivos e extractivos. Da mesma forma, em Como a Europa Subdesenvolveu a África, Walter Rodney destacou que, em vez de desmantelar o status quo construído pelos regimes coloniais para beneficiar os capitais coloniais através da “exploração parasitária” das terras e dos povos colonizados, as elites pós-independência muitas vezes apenas substituíram os colonizadores europeus no comando. 


Em “Monsters You Made”, Burna Boy não culpa apenas as elites pós-independência da Nigéria pelos fracassos socioeconómicos e de desenvolvimento. A canção termina com a voz de Ama Ata Aidoo, a falecida académica, autora e ex-ministra da Educação do Gana, que, numa entrevista em 1987 a um jornalista europeu, destacou o seguinte: “Desde que vos conhecemos, há quinhentos anos /Olhe para nós, demos tudo/Vocês ainda estão recebendo/Em troca, não recebemos nada/Nada.” 


Em resposta, o jornalista pergunta: “Mas você não acha que isso já acabou?” Aqui, o jornalista aparentemente refere-se ao colonialismo e ao seu impacto no continente africano e sugere que os colonizadores não podem mais ser culpados pelos desafios em África. Para isso, Aidoo responde: “Onde?/Acabou?” 


As palavras de Aidoo lembram-nos que os desafios pós-independência no continente africano não podem ser examinados isoladamente, sem uma análise crítica da conquista colonial – a pilhagem, a opressão e a engenharia social e política que os colonizadores utilizaram. 


A colonialidade é a residual presença estrutural e cultural da colonização – as disposições e estados de ser mentais, emocionais e de agência. Para o autor e académico Sabelo Ndlovu-Gatsheni, a colonialidade é uma estrutura de poder global construída e entrincheirada para manter sistemas injustos, desiguais, assimétricos e exploradores, enraizados em ideias da supremacia branca.  


Ao adicionar a voz de Aidoo a “Monsters You Made”, Burna Boy enquadra as experiências e desafios pós-independência nigerianos e africanos mais amplos dentro do conceito de colonialidade. Mais importante ainda, a canção implica que as relações de poder coloniais e as estruturas e sistemas hegemónicos não terminaram quando os países africanos se tornaram independentes, mas continuaram em diferentes formatos através da colonialidade até hoje. 


Burna Boy também canta sobre a hegemonia eurocêntrica na educação nigeriana muito depois da independência, destacando que, apesar da independência política dos colonizadores britânicos em 1960, os jovens nigerianos ainda aprendem ensinamentos e visões de mundo brancos nas escolas e universidades africanas: 


Aposto que eles acharam legal/Provavelmente pensaram que éramos (sic) tolos/Quando quebraríamos todas as regras/E faltaríamos às aulas na escola/Porque o professor está ensinando/O que o homem branco está ensinando/Os ensinamentos europeus na minha Escola africana/Então foda-se as aulas na escola. 


Ele se concentra em Mungo Park, um explorador escocês creditado com a “descoberta” do rio Níger, e canta: “Foda-se Mungo Park e o tolo/Que disse que eles encontraram o rio Níger/Eles estão mentindo para você/Negando a verdade.” Aqui, ele segue os passos de Walter Rodney, que achou ridículo que alguém pudesse levar a sério as alegações de “descoberta” de África pelos colonizadores europeus. No entanto, Burna Boy reconhece que este é um problema para a sua geração; estes conceitos coloniais, racistas e hegemónicos continuam a ser reciclados e propagados em África por educadores africanos. 


Tal como sublinhado pelo académico sul-africano Morgan Ndlovu, “a colonialidade do conhecimento é uma alavanca fundamental no sistema estrutural de dominação colonial”. Apesar da retórica sobre a africanização e a descolonização epistémica em grande parte do continente desde a independência, muitos sistemas educativos africanos permanecem presos a epistemologias, pedagogias e currículos eurocêntricos. Implicitamente, Burna Boy destaca que “os ensinamentos europeus na minha escola africana” fazem parte de um projecto neocolonial persistente. 


A principal razão para olhar para um quadro histórico e contemporâneo mais amplo ao discutir a descolonização epistémica é que o desmantelamento da hegemonia eurocêntrica e a descolonização do conhecimento não podem acontecer isoladamente, sem uma descolonização socioeconómica e política global e continental mais ampla. O poeta queniano-americano Mũkoma wa Ngũgĩ destaca que a descolonização da mente e do conhecimento deve andar de mãos dadas com a descolonização material e a desintegração das estruturas e sistemas políticos, geopolíticos e económicos que mantêm a colonialidade. 


A colonialidade e a luta decolonial não são apenas preocupações e prioridades académicas. No entanto, como salienta Mahmood Mamdani, os debates e o trabalho sobre a descolonização permaneceram em grande parte afastados dos debates públicos no continente africano desde a independência. 


“Monsters You Made” de Burna Boy é uma importante contribuição crítica para os compromissos, debates e narrativas de movimentos decoloniais, ativistas e estudiosos em África e noutros lugares. A chave para manter a luta viva e inclusiva em todas as esferas das sociedades anteriormente colonizadas é levar os debates para fora das torres de marfim e dos círculos académicos para o espaço público. 


Este artigo foi publicado originalmente pelo blogue Africa is a Country. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é de responsabilidade da Oficina Global.

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