Ativismo

Créditos da imagem: Reprodução do filme


Aquando da estreia internacional de Mortu Nega no Festival de Veneza, o crítico de cinema Francesco Bono realçou uma cena que, na sua opinião, encerrava um dos sentidos centrais do filme do cineasta guineense Flora Gomes: a ideia de que a luta não tinha acabado com a proclamação da independência política, mas devia concretizar-se, sobretudo, na construção de um novo país.  


Na cena em questão, um professor orienta uma discussão sobre a palavra “luta” com adultos e crianças. Um dos alunos acha que entende o que é a luta mas pede ao professor mais esclarecimentos: sugere-se assim que a ideia da luta era algo interiorizado pelo povo, mas precisava de ser codificada pelo ensino e pelos intelectuais, como também pelas várias manifestações da arte e da cultura. De facto, Mortu Nega aposta na profunda ligação entre a revolução e o cinema. Trata-se de uma ligação central na visão política e cultural de Amílcar Cabral e de outros líderes dos movimentos de libertação em África, que entenderam logo a importância das imagens em movimento para a luta e a construção das nações independentes.  


Na mesma cena, uma mulher refere que para ela a luta era arranjar maneira de sustentar os seus filhos. A revolução tinha que garantir novas condições materiais de vida para o povo, isto é, outro aspeto central do pensamento de Cabral que Flora Gomes introduziu no seu filme. 


Pelas palavras do professor, entendemos que as aulas são sobre o lema da independência da Guiné: Unidade, Luta e Progresso. É um lema que remete para um projeto de nação que cabia a todos construir, mas que também é revisitado, no filme, a partir de vários ângulos de visão.  


O mesmo professor aparece noutra cena em que quer ajudar Diminga no trabalho agrícola. Diminga é a protagonista principal do filme, que regressa para a sua aldeia após o fim da guerra. Esta cena mostra que um dos sentidos da luta era também construir relações de igualdade entre homens e mulheres e entre as diversas classes sociais, no intuito de criar uma verdadeira unidade nacional.  


A unidade nacional apesar das diferenças étnicas, culturais e linguísticas dos povos da Guiné-Bissau é central no filme.  Na primeira parte, como declarou também o próprio realizador numa entrevista, o protagonista é o inteiro povo da Guiné, unido pelo sofrimento da guerra e pela esperança da vitória. Mas a unidade nacional não é o único sentido da palavra unidade que emerge no filme. Desde as primeiras sequências o movimento dos corpos no espaço, a relação que o povo tem com a terra e com o meio-ambiente revelam também outro sentido de unidade. Alguns planos, como por exemplo aquele em que vemos as pessoas usarem as lianas para atar as armas, mostram que há uma síntese entre humanidade, natureza, cultura e luta.

Imagem: Reprodução do filme


O sentido de unidade desdobra-se também na presença difusa das ideias de cuidado e afetos – o lado mais íntimo e humano da solidariedade política e cívica. Os cuidados de Diminga para com o marido Sako, mas também para com Lebeth, uma mulher idosa cuja aldeia foi destruída durante a guerra, dão um sentido afetivo à luta de libertação e à unidade nacional. 


Unidade, luta e progresso marcam também a cena final sobre um ritual tradicional liderado por Diminga e outras mulheres. Neste ritual, a tradição torna-se ferramenta de crítica política de certas formas falsificadoras de “progresso”, anuncia uma luta por vir e apela para uma unidade em todas as diferenças se harmonizem na construção do que seria o verdadeiro progresso, isto é, a síntese das potencialidades mais positivas dos elementos culturais dos povos da Guiné-Bissau.  

Imagem: Reprodução do filme


Como afirma Amílcar Cabral, “Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilibrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso”.  


Mortu Nega e outros filmes de Flora Gomes apropriam-se desta ideia de cultura elaborada por Cabral. O realizador, nascido em 1949 em Cadique, no sul da Guiné-Bissau, teve intensos contatos com Amílcar Cabral em Conacry onde frequentou uma escola criada pelo líder do PAIGC chamada “escola-piloto” pelo seu caráter experimental.  


Mortu Nega e os outros filmes realizados por Flora Gomes reinventam a ideia de cultura nacional a partir do cinema, cujo papel continua central na luta pela descolonização cultural.  


O filme Mortu Nega é a primeira longametragem de ficção de Flora Gomes, foi produzido em 1988 pelo Instituto Nacional de Cinema da Guiné-Bissau e exibido em vários festivais de relevo, como o FESPACO de Ouagadougou e o Festival de Cannes. O filme está disponível online no YouTube. 

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