Créditos da Imagem: Cristina Fontán via Flickr (CC BY-NC-ND 2.0).
Da Ásia Meridional à Amazônia, comunidades buscam novas formas de governança que respeitem humanos e natureza
Panchi nadiya pawan ke jhonke
Koi sarhad na inhe roke
Sarhadein insaano ke liye hai
Socho tumne aur maine kya paaya insaan hoke”
(Tradução)
“Pássaros, rios e as rajadas de vento
Nenhuma fronteira pode detê-los
As fronteiras são para os humanos
Agora pense, o que ganhamos sendo humanos?”
Javed Akhtar, letrista indiano
Está se tornando cada vez mais óbvio que precisamos pensar juntos sobre os problemas da crise climática e das fronteiras. O colapso ambiental desloca milhões de pessoas todos os anos, enquanto os Estados respondem através da militarização de suas fronteiras, causando mais sofrimento e morte.
Não é por acaso que o colapso climático e as fronteiras dos Estados estão interligados. Historicamente, o Estado-nação nasceu de uma lógica que também via a natureza – e os povos colonizados – como coisas a serem conquistadas e dominadas. Agora, desde as regiões fronteiriças devastadas pela guerra da Ásia Meridional até a floresta amazônica, as pessoas estão questionando se a sustentabilidade pode ser alcançada através da estrutura de Estados-nação. Comunidades estão se voltando para outras formas de organizar a sociedade com base em visões de mundo e práticas indígenas que respeitam todos os humanos e a natureza.
Colonialismo, capitalismo e Estado-nação
Nos últimos 500 anos, as conquistas coloniais de vastas regiões da Terra pelas potências europeias e norte-americanas, baseadas na busca do lucro capitalista e no rápido desenvolvimento tecnológico, resultaram na dizimação de inúmeras culturas e comunidades. Isso inclui a morte de mais de 50 milhões de habitantes nativos no que posteriormente veio a ser conhecida como América Latina, fome devastadora na Ásia e na África causada por políticas impostas pelos colonizadores e a conversão de milhões de hectares de ecossistemas naturais em plantações comerciais, propriedades madeireiras, ou fazendas de gado para saciar as demandas dos consumidores da Europa e América do Norte.
No mesmo período, surgiu a ideia e a prática do Estado-nação. Embora suas origens e natureza sejam diversas e complexas, a centralização do poder nas mãos do Estado-nação foi uma das bases do capitalismo: na prática, o capitalismo é realizado através das instituições políticas, jurídicas e militares dos Estados-nação. A construção do Estado-nação foi sustentada por uma ideologia que afirmava que a modernidade capitalista é a única forma de organizar vidas, o que justifica a apropriação de territórios de povos indígenas e comunidades locais para objetivos nacionais, como desenvolvimento e segurança. Símbolos de Estado-nação, como uma bandeira, uma língua e uma identidade única, submergem e muitas vezes desrespeitam diversas bioculturas – ambientes humanos biológicos e culturais combinados. Devemos sempre considerar que o Estado-nação, o capitalismo e o colonialismo andam de mãos dadas.
A ideologia da era colonial-industrial afirmava, de forma ilusória, que os humanos estavam separados da natureza e que o progresso humano dependia de conquistá-la. Com a derrota das antigas formas de colonialismo na maior parte do mundo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados-nações dominantes precisaram criar uma nova ideologia para continuar a dominação do Ocidente. Assim surge a ideologia do desenvolvimento, ou o “desenvolvimentismo”. Poderíamos supor que a ideia de “desenvolvimento” é progressiva, mas estaríamos enganados. O desenvolvimentismo convenceu o mundo de que o progresso humano estava ligado ao crescimento material e energético em constante expansão. As crises ecológicas que o mundo enfrenta hoje são em grande parte resultado desses cinco séculos de colonialismo e desenvolvimentismo.
É neste contexto que existe hoje uma intensa procura de alternativas radicais que possam ir ao encontro das necessidades e aspirações de todos os povos, que permitam viver em harmonia com o resto da natureza.
Biorregionalismo e democracia radical
Em 2017, 90 aldeias da Índia central formaram uma mahagram sabha (federação de assembleias de aldeias). Desde então, essas comunidades vêm afirmando sua tomada de decisão em toda a região, reunidas por um senso tradicional de identidade biocultural, em vez de fronteiras administrativas ou políticas atuais. Em 1999, 65 aldeias de uma bacia hidrográfica no estado indiano do Rajastão formaram um parlamento popular que o governou por uma década, ignorando a divisão administrativa da bacia. Esses e outros exemplos são indicadores de uma abordagem radicalmente diferente de governança: o biorregionalismo.
O biorregionalismo baseia-se no entendimento de que os atributos geográficos, climáticos, hidrológicos e ecológicos da natureza sustentam toda a vida e, como tal, seus fluxos precisam ser respeitados. As biorregiões, também conhecidas como regiões bioculturais, são áreas com ecologias e culturas próprias, nas quais os humanos e outras espécies estão enraizados, participando ativamente em várias escalas além do local imediato. Enquanto muitas fronteiras atuais feitas pelo homem desconsideram os fluxos e territórios da natureza, como uma cordilheira ou um rio, muitas comunidades locais e povos indígenas vivem há muito tempo com profundo entendimento e respeito por eles. Eles entendem a interdependência de todos os seres vivos em uma paisagem, terrestre ou marinha.
Há muitos exemplos de governança biorregional, antigos e novos. Por milhares de anos, pastores nômades no Irã faziam uso de grandes territórios, abrangendo uma diversidade de ecossistemas, através de práticas ajustadas a uma compreensão aguda de quais ecossistemas poderiam receber quanto e que tipo de uso. Em tempos mais recentes, a nação indígena de Monkox de Lomerío, na Bolívia, conquistou o direito de autodeterminação territorial em 2006 e busca transformações em sua vida econômica, política, social e cultural a partir de um projeto de vida para toda a região. O projeto Great Eastern Ranges visa proteger, conectar e restaurar habitats em uma faixa de 3,6 mil km do leste da Austrália, criando canais de coordenação regional entre vários atores. Em muitas outras partes do mundo, povos indígenas ou outras comunidades locais estão sustentando mecanismos tradicionais de governança da paisagem, ou criando novos, como parte de um fenômeno global agora conhecido como Territórios da Vida. Muitos desses projetos cruzam fronteiras políticas e administrativas, respeitando fluxos e limites ecológicos e culturais.
Na melhor das hipóteses, esses projetos biorregionais são baseados na democracia direta e radical. O poder de tomada de decisão é, em última análise, mantido em nível local, no qual todos podem participar. Para decisões que afetam territórios maiores, os delegados são enviados para assembleias decisórias apropriadas a essa escala. Existem afinidades estreitas entre esses movimentos e o que Mahatma Gandhi chamou de swaraj, uma visão de mundo que afirma autonomia, liberdade e soberania, mas de maneiras não violentas que são responsáveis pela autonomia e bem-estar de todos.
O sul da Ásia visto de uma perspectiva biorregional
Por várias razões históricas, incluindo a colonização, a Ásia Meridional está atualmente dividida em vários Estados-nações, com fronteiras políticas que atravessam ecossistemas e culturas. Por exemplo, a maior floresta de mangue do mundo, os Sundarbans, é dividida pela fronteira Índia-Bangladesh. As altas montanhas do Himalaia e as vastas áreas desérticas a oeste estão divididas entre a Índia e o Paquistão. O grande planalto de alta altitude ao norte do Himalaia está cercado, com Ladakh de um lado e o Tibete, governado pela China, do outro. As águas do Oceano Índico são parcialmente divididas entre a Índia, o Sri Lanka e as Maldivas.
Aqui está uma visão para o sul da Ásia que é muito diferente da realidade atual, adaptada de um ensaio de coautoria de um dos autores deste artigo. Faz parte de um discurso imaginário aos habitantes da Ásia Meridional, no ano de 2100:
“Enquanto Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal, Butão, Sri Lanka e China ainda mantêm suas identidades “nacionais”, as fronteiras se tornaram porosas, não precisando de visto para atravessar. As comunidades locais assumiram a maior parte da governança nessas áreas fronteiriças, tendo declarado a paz em zonas de conflito anteriores como Siachen, os desertos de Kachchh e Thar e os Sundarbans. O mesmo se aplica ao Estreito de Palk, com comunidades pesqueiras da Índia e do Sri Lanka capacitadas para garantir o uso sustentável e pacífico das áreas marinhas. O Grande Tibete autogovernado tornou-se uma realidade, com a Índia e a China havendo renunciado a seu domínio político e econômico sobre ele. Tanto as comunidades nômades quanto a vida selvagem agora podem se mover livremente de um lado para o outro.
Em todas essas iniciativas, o nacionalismo estreito está sendo substituído por identidades civilizacionais, orgulho e troca, uma espécie de etnicidade auto-formada que incentiva o respeito e o aprendizado mútuo entre diferentes civilizações e culturas. A Ásia Meridional aprendeu com os erros de blocos como a União Europeia, com sua estranha mistura de centralização e descentralização e dependência contínua do Estado-nação, elaborando sua própria receita para respeitar a diversidade dentro de uma unidade de propósito.”
Embora esta seja uma visão futurista, alguns caminhos provisórios para essa realidade já estão sendo forjados. Além dos exemplos dados acima de aldeias que se reúnem para governar democraticamente as biorregiões, estão em andamento diálogos interpessoais centrados na paz, como o Fórum Popular para a Paz e a Democracia entre o Paquistão e a Índia. A ideia de um Parque da Paz de Siachen, na área de intenso conflito entre a Índia e o Paquistão, vem sendo proposta há muitos anos e até endossada pelo ex-primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh. A cooperação de conservação transfronteiriça existe entre a Manas Tiger Reserve na Índia e a Royal Manas no Butão, alinhando-se com várias dezenas de iniciativas já estabelecidas em todo o mundo. Mas é claro que, dada a contínua atmosfera de desconfiança e conflito na região, acompanhada de discursos hipernacionalistas em ascensão periódica (atualmente, promovidos pelo partido no poder em Nova Délhi), há um longo caminho a percorrer para que esses caminhos sejam trilhados.
Abordagem biorregional para a Amazônia
A região das Cabeceiras Sagradas, no Alto Amazonas, é um dos berços do rio Amazonas. Abrangendo 35 milhões de hectares no Equador e no Peru, a região é lar de cerca de 600 mil indígenas de 30 etnias, incluindo povos que vivem em isolamento voluntário. É o ecossistema terrestre mais biodiverso do planeta e representa tanto a esperança quanto o perigo de nossos tempos. Graças às lutas dos povos indígenas, esta região se manteve em grande parte livre da extração industrial. Estudos de organizações internacionais, como a ONU, Rainforest Alliance e Hivos, mostram que os povos indígenas são os melhores guardiões da natureza, especialmente na biorregião amazônica.
Em resposta às novas ameaças dos Estados equatoriano e peruano de expandir a exploração de petróleo, mineração e projetos agroindustriais intensivos, as confederações indígenas de ambos os países se uniram para formar a iniciativa Cabeceiras Sagradas da Amazônia (ASHI). Em 2019, o grupo fez uma declaração pública:
“Pedimos o reconhecimento global da floresta amazônica como um órgão vital da biosfera. Apelamos aos governos do Equador e do Peru e às corporações e instituições financeiras que respeitem os direitos e territórios indígenas e impeçam a expansão de novos projetos de exploração de petróleo, gás, mineração, agricultura industrial, pecuária, projetos de megainfraestrutura e estradas nas cabeceiras sagradas. O legado destrutivo deste modelo de “desenvolvimento” tem sido o desmatamento em massa, degradação florestal, contaminação e perda de biodiversidade, dizimando populações indígenas e causando violações de direitos humanos. Desafiamos a visão de mundo equivocada que vê a Amazônia como uma região rica em recursos, onde as matérias-primas são extraídas em busca de crescimento econômico e desenvolvimento industrial.”
Em vez de uma visão de desenvolvimento que vê o progresso humano como a conquista da natureza, a ASHI entende a interdependência da vida para além das fronteiras nacionais. O Plano Biorregional da ASHI propõe autodeterminação indígena com participação efetiva das mulheres; uma economia altamente diversificada que combina novos métodos agrícolas ancestrais e soberania alimentar e energética; sistemas de saúde interculturais que respeitem a diversidade de gênero e de geração; sistemas educacionais que combinam aprendizagem formal com não formal; e um programa completo de conservação e restauração da Amazônia.
Tornar o biorregionalismo em realidade
As abordagens biorregionais, que abrangem a democracia radical, oferecem às comunidades a chance de reconstruir e melhorar suas vidas e meios de subsistência, livres do medo constante de conflitos e indústrias extrativas violentas. Na Amazônia, elas podem ajudar a garantir o sustento ecológico, econômico e cultural dos povos indígenas e outras comunidades locais, ao mesmo tempo em que fornecem todos os benefícios ecológicos locais e globais da maior floresta tropical do mundo. Na Ásia Meridional, a retirada das forças armadas e outras forças policiais e paramilitares da terra e do mar poderia pôr fim ao sofrimento das populações locais, especialmente nas condições traiçoeiras e congelantes das áreas fronteiriças do Himalaia entre Índia, Paquistão e China. Isso também significaria que uma parte substancial das despesas de defesa de US$ 72 bilhões da Índia poderia ser realocada.
Essa abordagem também implicaria em desfazer danos passados às biorregiões, na medida do possível. Os impactos das mudanças climáticas nas formas de secas e inundações continuarão se agravando. É crucial reimaginar a forma como governamos as zonas úmidas e todas as biorregiões. Algumas barragens em rios transfronteiriços podem precisar ser desativadas para restabelecer os fluxos hídricos, ecológicos e biológicos. Quaisquer barragens maiores e condenatórias devem ser evitadas. Um rio saudável costuma ser a primeira linha de defesa contra crises climáticas, incluindo suas funções quando desembocam no mar. Uma abordagem biorregional também pode ajudar a lidar com alguns dos piores impactos das mudanças climáticas, como o deslocamento de comunidades costeiras – incluindo um provável fluxo de refugiados climáticos de Bangladesh para a Índia, o que pode se tornar uma enorme crise humanitária sem planejamento prévio adequado – ou migrações da vida selvagem para altitudes mais elevadas.
As abordagens biorregionais enfrentam desafios significativos, entre os quais as noções nacionalistas que continuam a apoiar as fronteiras rígidas dos Estados-nações. E, no entanto, os diálogos de paz, projetos de conservação transfronteiriços e iniciativas biorregionais indígenas discutidas acima são fontes de esperança.
Outro passo importante é o reconhecimento dos direitos da natureza. Em 2017, o Parlamento da Nova Zelândia aprovou a Lei Te Awa Tupua (Acordo de Reivindicações do Rio Whanganui), que confere ao rio Whanganui e ao ecossistema caráter jurídico e com direito próprio, garantindo sua “saúde e bem-estar”, reconhecendo a cosmologia Iwi “nós somos o rio e o rio somos nós” e reconhecendo que os direitos se estendem a toda a biorregião, da montanha ao mar.
No mesmo ano, o tribunal superior de Uttarakhand, na Índia, determinou que os rios Ganges e Yamuna do norte da Índia, seus afluentes e as geleiras e bacias hidrográficas que alimentam esses rios no estado de Uttarakhand possuem direitos como “pessoa jurídica/legal/entidade viva”.
O reconhecimento de tais direitos poderia possibilitar a gestão e a governança com base nas realidades ecológicas da região. Isso também abre a oportunidade para alterarmos a lei antropocêntrica e colonial atualmente dominante, em direção a uma nova estrutura legal que respeite o “pluriverso” – a bela diversidade do mundo. Para além da lei, o reconhecimento dos direitos da natureza abre a possibilidade de articular visões de mundo indígenas da natureza como ser vivo, mesmo dentro de instituições formais. Também possibilita a criação de um futuro mutuamente florescente para humanos e os mais-que-humanos, onde a vida das pessoas está enraizada em territórios que não têm fronteiras militarizadas arbitrárias, mas são ecologicamente e culturalmente definidos, abertos e conectados.
Este texto foi originalmente publicado pelo blogue OpenDemocracy.