Descolonizar o Desenvolvimento

Créditos da imagem: Pixabay via Pexels.


O esforço de ‘descolonização’ está muito em voga (não apenas, mas também) nas recentes discussões e debates nos meios académicos e no Ensino Superior. Mas o que esta afirmação implica, de forma prática e tangível, para a academia em geral e para a investigação e os estudos de desenvolvimento especificamente? Neste blogue, quero identificar brevemente o que eu vejo como estruturas eurocêntricas ou mesmo coloniais nos estudos de desenvolvimento em termos de sua base de conhecimento e sua produção de conhecimento antes de identificar possíveis formas de descolonizar a investigação de desenvolvimento. 


O conhecimento dos estudos de desenvolvimento: estruturas eurocêntricas e coloniais 


Se atendermos ao apelo de Chakrabarty para ‘provincializar a Europa’, devemos examinar o eurocentrismo de conceitos supostamente universais em nossa disciplina e mesmo a colonialidade de nosso conhecimento na disciplina, como argumentado por Bhambra entre outros. Baseado em críticas pós-coloniais e especialmente pós-desenvolvimentistas, posso identificar seis estruturas profundamente eurocêntricas e coloniais no conhecimento dos estudos de desenvolvimento. 


Naturalização e a escala universal: As experiências e mudanças históricas das sociedades da Europa Ocidental (incluindo colônias de povoamento europeias em outros lugares) são interpretadas como manifestações de um processo universal de mudança que ocorre mais cedo ou mais tarde em todas as sociedades. Isto pressupõe uma escala universal de evolução social ou progresso ou ‘desenvolvimento’. E esta escala é baseada em um nacionalismo metodológico, sendo os Estados-nação geralmente as unidades de análise. Isto permite o mito de histórias isoladas de sucesso da industrialização e do Iluminismo, negando histórias enredadas, o papel crucial de um sistema mundial capitalista e a transferência massiva de riqueza durante o colonialismo. 


Alteridade e a problematização do desvio: A naturalização da própria sociedade leva à problematização dos outros e à dicotomia entre o eu desenvolvido e o outro subdesenvolvido. Esta estrutura é uma continuação da visão do mundo colonial (eu civilizado vs. outro selvagem/bárbaro/incivilizado) e se baseia numa ‘transformação das diferenças geoculturais em estágios históricos’ e numa atribuição de norma e desvio que ainda é visível na criação pelos estudos de “desenvolvimento” de anormalidades a serem tratadas e reformadas. Assume-se que há problemas sociais, económicos e políticos no Sul ‘subdesenvolvido’, enquanto o conhecimento para sua solução pode ser encontrado no Norte ‘desenvolvido’. 


Promessa de ‘desenvolvimento’ como instrumento geopolítico: desde sua concepção, a ideia de ‘desenvolvimento do subdesenvolvido’ funcionou para legitimar uma ordem mundial capitalista no contexto histórico da Guerra Fria e da descolonização e da ameaça de revoluções socialistas através da promessa de soluções do tipo ganha-ganha e de afluência futura a fim de manter uma divisão colonial do trabalho e o acesso a recursos e mercados no Sul (Alcalde 1987: 223, Rahnema 1997: 379). 


Hierarquização de conhecimentos: Até hoje, os estudos de desenvolvimento são geralmente baseados na hierarquização de conhecimentos (e suas cosmologias e valores relacionados), separando o conhecimento científico universal e objetivo originário do Ocidente de outros sistemas de conhecimento não-Ocidentais desacreditados como superstição ou religião. Isto legitima a atribuição do conhecimento de resolução de problemas ao Ocidente (ou a instituições baseadas no tipo de conhecimento que se tornou hegemônico no Ocidente durante a modernidade) (Apffel-Marglin/Marglin 1990, Nandy 1988, Santos 2014). 


Despolitização da desigualdade: Embora o ‘desenvolvimento’ forneça um quadro para interpretar e lidar com o problema da desigualdade socioeconómica, ele geralmente constrói o problema de forma que seja passível de solução técnica (transferência de dinheiro, conhecimento ou tecnologia) e ignora a exploração, os conflitos de interesse e as relações de poder dos níveis global, nacional ou local. A dimensão política da desigualdade é ignorada e as soluções para os problemas são concebidas geralmente com o sistema capitalista existente, buscando maneiras de ajudar os pobres sem ferir os ricos (Ferguson 1994, Li 2007). 


Masculinismo: o conhecimento dos estudos de desenvolvimento está centrado em torno da racionalidade, produtividade e domínio sobre a natureza – qualidades tradicionalmente atribuídas aos homens. Historicamente, aqueles que não estavam em conformidade com o ideal do homem branco de classe média eram construídos como emocionais, irracionais, improdutivos, como próximos da natureza ou como parte da natureza e, portanto, podiam ser explorados à vontade e precisavam ser guiados e educados: mulheres, crianças e nativos. Seus conhecimentos foram especificamente combatidos pela ciência moderna (Mies/Shiva 1993, McClintock 1995, Federici 2004). 


Estas estruturas no conhecimento dos estudos de desenvolvimento permitem diferentes tipos de ações paternalistas ou violentas contra pessoas em contextos sociais definidos como ‘subdesenvolvidos’. A literatura sobre deslocamento induzido pelo desenvolvimento concorda que a cada ano pelo menos 10 milhões de pessoas perdem seu sustento por causa de projetos de ‘desenvolvimento’. 


A produção do conhecimento dos estudos de desenvolvimento: imperialismo académico 


Contudo, mesmo além do nível do conteúdo do conhecimento, a produção de conhecimento nos estudos de desenvolvimento ainda é moldada pelo colonialismo. No colonialismo, o conhecimento era produzido por homens brancos atuando como exploradores e investigadores em áreas cuja produção própria de conhecimento era rejeitada (ver acima). 


Em uma obra clássica da teoria do desenvolvimento, um teórico de renome (um homem branco, coincidentemente) comentou: ‘Estranhamente, em retrospectiva, a maioria daqueles que começaram a teorizar sobre países subdesenvolvidos eram cidadãos dos países desenvolvidos’. Isto se espelha até hoje nos livros didáticos e nos currículos dos estudos de desenvolvimento, que ainda tratam predominantemente dos trabalhos dos teóricos ocidentais (e alguns teóricos não-Ocidentais) escrevendo sobre como alcançar sociedades à imagem do Ocidente, ou seja, sociedades modernas, seculares, liberais, produtivas e democráticas – embora a maré possa estar começando a mudar nos dias de hoje. Porém, não apenas nos livros didáticos e na mentalidade, também nas próprias instituições e pessoal, as continuidades entre a administração colonial e os estudos de desenvolvimento são claramente visíveis


Se pensarmos no ‘direito à investigação’ hoje, temos que reconhecer que isto certamente não está exclusivamente ligado a uma cor de pele específica, mas também não está totalmente livre de desigualdades e conotações derivadas da era do colonialismo. Se perguntarmos ‘quem faz investigação sobre quem?’, ‘quem se beneficia desta investigação?’ e ‘quem é usado como objeto de produção de conhecimento?’, percebemos que no contexto dos estudos de desenvolvimento a era do colonialismo até hoje tem efeitos sobre os padrões atuais: geralmente as pessoas do Sul fornecem os dados (como entrevistados ou ‘informantes nativos’), enquanto as pessoas do Norte fornecem a teoria e fazem uma carreira sobre as informações que coletaram dos outros, mesmo sendo considerados como especialistas sobre a região que visitaram por alguns meses


Assim, o ‘imperialismo académico’ pode ser visto também no nível de produção de conhecimento na forma de extrativismo do conhecimento, e não é surpreendente que Smith, da perspectiva dos povos indígenas, chegue a um veredicto condenatório: ‘a investigação tem sido um processo que explora os povos indígenas, sua cultura, seu conhecimento e seus recursos’


Descolonizando a pesquisa de desenvolvimento 


Então o que podemos fazer, como investigadores privilegiados no Norte, se ainda queremos trabalhar como investigadores no campo da desigualdade global e sua melhoria? 


Em primeiro lugar, refletir sobre as perguntas acima e daí derivar princípios e diretrizes para nossa investigação. A Carta de Ética da Investigação Decolonial sugere que as questões de investigação e a publicação dos resultados da investigação devem ser decididas exclusivamente não pelo investigador, mas pelos movimentos sociais decoloniais no Sul. Isto é louvável, mas abandona a independência do investigador e assume que estes movimentos falam a uma só voz, negligenciando possíveis conflitos internos ou relações de poder. Além disso, este alto padrão é às vezes difícil de conciliar com as exigências da produção de conhecimento no meio académico. 


No entanto, há três princípios básicos para o processo de produção de conhecimento académico que podem ser levados a sério por todos os investigadores: 


Dar crédito: podemos combater o imperialismo académico reconhecendo especificamente as contribuições dos investigadores do Sul na literatura, ou dos co-produtores de conhecimento do Sul (como entrevistados, informantes, dentre outros) ou dos conceitos e sistemas de conhecimento do Sul em geral. 


Retribuição: todos aqueles que passaram uma parte de seu valioso tempo com o investigador fornecendo informações ou respondendo perguntas ou apoiando-os de forma prática e, assim, tornaram a investigação possível em primeiro lugar, têm o direito de conhecer os resultados da investigação. Isto precisa acontecer em uma forma e linguagem facilmente acessível a eles. 


Dando espaço: Sempre que fazemos investigação, escrevemos um artigo ou damos uma palestra pública, podemos nos perguntar: isto tem que ser feito por mim ou poderia ser feito igualmente por outra pessoa menos privilegiada, por pessoas mais marginalizadas, talvez por alguém localizado no Sul? 


Quanto ao conteúdo da produção do conhecimento, parece-me que as seguintes áreas prometem caminhos interessantes: 


Geopolítica do conhecimento do desenvolvimento: Quem possui conhecimento considerado relevante sobre soluções para os problemas globais urgentes relativos à desigualdade, ao clima, à justiça social? Por que estamos fazendo distinções entre os conhecimentos globais e locais? Por que os Estudos de Desenvolvimento se preocupam com a pobreza apenas em certas partes do mundo? Como as políticas de produção e publicação do conhecimento académico (revistas de alto nível, acesso pago) contribuem para manter as assimetrias epistémicas? 


Comparações através da divisão colonial: Quais são as semelhanças e diferenças da ajuda ao desenvolvimento no Sul e da assistência social no Norte e dos protestos contra projetos de desenvolvimento no Sul e projetos de infraestrutura no Norte? 


Outros conhecimentos: Como conceitos e cosmologias não-Ocidentais podem contribuir para uma ideia pluriversal de mudança social positiva? Como podemos manter um conceito universal de direitos sem suprimir as diferenças culturais? 


Uma ideia central do pós-estruturalismo é que as estruturas são de fato instáveis e têm de ser reproduzidas continuamente. Isto significaria que as estruturas de produção de conhecimento em estudos de desenvolvimento podem, de fato, ser alteradas se fizermos nossas investigações de outra forma. E isso é um pensamento encorajador. 


Este artigo foi publicado originalmente pelo Convivial Thinking. Leia artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.   O texto é baseado em uma apresentação realizada para a Rede de Pesquisa COST ‘Decolonizando o Desenvolvimento’. 


Bibliografia e Outras Leituras 

Alcalde, Javier Gonzalo 1987: The Idea of Third World Development: Emerging Perspectives in the United States and Britain, 1900–1950. Lanham, MD: University Press of America. 

Apffel-Marglin, Frédérique/Marglin, Stephen (eds.) 1990: Dominating Knowledge: Development, Culture and Resistance. Oxford: Clarendon. 

Federici, Silvia 2004: Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive Accumulation. Brooklyn: Autonomedia. 

Ferguson, James 1994: The Anti-politics Machine: ‘Development’, Depoliticization and Bureaucratic Power in Lesotho. Minneapolis: University of Minnesota Press. 

Li, Tania Murray 2007: The Will to Improve: Governmentality, Development, and the Practice of Politics. Durham, NC: Duke University Press. 

McClintock, Anne 1995: Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. London: Routledge. 

Mies, Maria/Shiva, Vandana 1993: Ecofeminism. London: Zed Books. 

Nandy, Ashis 1992: Traditions, Tyranny, and Utopias. Essays in the Politics of Awareness. Delhi, Oxford University Press. 

Rahnema, Majid 1997: Towards Post-development: Searching for Signposts, a New Language and New Paradigms. In: Rahnema, Majid with Victoria Bawtree (eds.) The Post-Development Reader. London: Zed Books, 377–403. 

Santos, Boaventura de Sousa 2014: Epistemologies of the South. Justice against Epistemicide. Boulder: Paradigm Publishers. 

Ziai, Aram 2016: Development Discourse and Global History. From Colonialism to the Sustainable Development Goals, London: Routledge. 

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