Direitos HumanosIgualdade de Género

Imagem em destaque: Pixabay


Desde 2014, 30 de julho é assinalado como o Dia Mundial contra o Tráfico de Seres Humanos. A Organização das Nações Unidas decretou a data com o objetivo de sensibilizar a população mundial em relação à causa e encorajar a ação coletiva com vistas a combater o problema e apoiar as vítimas. Segundo dados do Relatório Tráfico de Seres Humanos 2019 do Ministério da Administração Interna, em Portugal – país considerado ponto de trânsito, origem e destino das vítimas – houve um aumento significativo no número de registos desses tipos de casos entre 2018 e 2019. Mulheres e raparigas são as principais vítimas. O sistema de prostituição está intimamente ligado ao tráfico de seres humanos. Para ilustrar essa relação e gerar conscientização, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) lançou recentemente o documentário “O Consentimento Não se Compra”.


A Oficina Global conversou sobre o tema com Ana Sofia Fernandes, Presidente da PpDM. Leia a entrevista na íntegra aqui.


OFICINA GLOBAL: Ana Sofia, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) lançou recentemente o documentário “O Consentimento Não Se Compra” sobre o sistema de prostituição. Porque é que é importante falar do sistema de prostituição quando falamos de tráfico de seres humanos? O que nos diz o documentário sobre esta realidade?


ANA SOFIA: “O Consentimento Não Se Compra” é o conceito que dá corpo e nome a um documentário que ilustra, sem maquilhagem, sem vozes distorcidas ou eufemismos, a realidade do sistema de prostituição que afeta desmesuradamente as mulheres e jovens em situações vulneráveis.

Promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, este documentário foi desenvolvido no âmbito do EXIT | DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES A NÃO SEREM PROSTITUÍDAS, projeto que visa contribuir para uma melhor compreensão sobre o sistema da prostituição e, em particular, sobre a violência inerente ao sistema. Acessível a todas/os, no canal de Youtube da Plataforma, o documentário tem como objetivo esclarecer a população da violação grosseira de Direitos Humanos que afeta e que tem sido ignorada ou tolerada pela sociedade portuguesa: a exploração no sistema prostitucional.



Ainda há muito pouco esclarecimento em Portugal sobre o sistema de prostituição e, por isso, perpetuam inúmeros mitos em torno da legalização da prostituição como forma de maximizar os Direitos Sociais e Humanos destas mulheres e jovens, o que é uma verdadeira quimera pois, necessariamente culminará em relações desiguais de poder conduzido pelo dinheiro e que muitas vezes implica violência e objetificação da mulher.


Com o testemunho na primeira pessoa de uma sobrevivente portuguesa do sistema de prostituição, e que agora trabalha no apoio a mulheres traficadas para fins de exploração sexual, o documentário inclui ainda os testemunhos de organizações portuguesas que prestam apoio de primeira linha no terreno às pessoas em situação de prostituição e de um conjunto de jovens com reflexão crítica sobre a sociedade dos nossos dias.


Ainda há muito pouco esclarecimento em Portugal sobre o sistema de prostituição e, por isso, perpetuam inúmeros mitos em torno da legalização da prostituição como forma de maximizar os Direitos Sociais e Humanos destas mulheres e jovens, o que é uma verdadeira quimera pois, necessariamente culminará em relações desiguais de poder conduzido pelo dinheiro e que muitas vezes implica violência e objetificação da mulher. Este documentário dá voz a quem conhece bem o sistema e o nosso objetivo é apoiar o esclarecimento e o debate público que encaminhe para a abolição do sistema de prostituição em Portugal.


Na verdade, só há tráfico para fins de exploração sexual porque há procura de prostituição. É uma relação umbilical que para ser contrariada, implica a adoção de políticas públicas como as da Suécia, Irlanda, França ou Noruega, que oferecem programas de saída e de apoio para pessoas no sistema de prostituição, combatendo o estigma social e erradicando a procura, através da penalização/criminalização da compra de sexo. Nestes países que implementaram políticas feministas abolicionistas, o tráfico para exploração sexual diminuiu.


No nosso país apenas são penalizados todos os que, com intenção lucrativa, fomentam, favorecem ou facilitam o exercício de prostituição através de outra pessoa, os denominados “proxenetas”, não protegendo as mulheres afetadas, na sua grande maioria em situações de enorme debilidade económica e social. Há uma tolerância social à prostituição em Portugal, e tal é evidenciado pelas estatísticas da justiça: entre 2010 e 2018, apenas 693 pessoas foram condenadas por tráfico de seres humanos e lenocínio. Em 2018 apenas 47 condenados.



OFICINA GLOBAL: Tendo em conta a sua experiência ativista, considera que tráfico de seres humanos é um problema de género? Porquê?


ANA SOFIA: Na UE, 62% do tráfico de seres humanos ocorre para fins de exploração sexual e 95% das vítimas são mulheres e raparigas. As mulheres são traficadas para a prostituição em apartamento, bares, e na rua. A esmagadora maioria dos compradores de sexo são homens, portanto é um sistema em que a dominação masculina prevalece. Os homens acham-se no direito de aceder ao corpo das mulheres (e de outros homens e pessoas trans) através do dinheiro explorando as inúmeras vulnerabilidades das pessoas na prostituição.


O tráfico de seres humanos para exploração sexual é claramente uma forma de violência masculina contra as pessoas prostituídas, em particular contra mulheres e crianças. É um grave problema social, uma forma de exploração que subverte o estatuto social e os direitos de todas as mulheres.


OFICINA GLOBAL: A Ana Sofia terminou recentemente o seu mandato enquanto Vice-Presidente do Lobby Europeu das Mulheres (European Women’s Lobby). Nas últimas décadas, como têm redes como a PpDM ou o Lobby Europeu das Mulheres contribuído para o avanço dos direitos das mulheres no contexto europeu?


ANA SOFIA: A Plataforma é a coordenação em Portugal do Lobby Europeu das Mulheres. A primeira Presidente daquela organização europeia foi uma portuguesa, a Ana Vale. Faz agora vinte e três anos desde que o Lobby Europeu das Mulheres definiu uma posição sobre a prostituição. Desde a nossa Assembleia Geral de 1998, a nossa determinação tem vindo a fortalecer-se em face dos vários estudos que demonstram como a violência, o sexismo e o racismo são inerentes ao sistema da prostituição, e temos feito um trabalho incansável para acabar com esta exploração. Várias das nossas atividades tiveram um impacto significativo e promoveram as oportunidades que existem atualmente:


⦁ um Parlamento Europeu que concorda que a prostituição é prejudicial e apoia responsabilizar exploradores e abusadores (2014);
⦁ cada vez mais Estados-Membros da UE adotam o modelo nórdico ou modelo da igualdade – o modelo abolicionista do sistema de prostituição.



A esmagadora maioria dos compradores de sexo são homens, portanto é um sistema em que a dominação masculina prevalece. Os homens acham-se no direito de aceder ao corpo das mulheres (e de outros homens e pessoas trans) através do dinheiro explorando as inúmeras vulnerabilidades das pessoas na prostituição.


É um movimento internacional, fundamentado em evidência, e temos de nos assegurar que esta dinâmica continua. Por outro lado, desde há três anos, o Lobby Europeu das Mulheres estabeleceu uma nova “Task force sobre Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos e Exploração Sexual”, que reúne especialistas de toda a Europa para enformar a nossa visão feminista sobre direitos sexuais e reprodutivos, educação sexual, prostituição, pornografia e gestação de substituição, entre outras questões, e para aumentar a nossa intervenção ao nível europeu e nacional neste domínio.


Neste momento, temos em curso a Campanha Europeia “Her Future is Equal – O Futuro Dela com Igualdade”, apelando à adoção do Modelo da Igualdade em toda a Europa para eliminar a exploração sexual e proteger todas as mulheres e raparigas da violência.


Resultado de uma iniciativa de 9 anos, denominada “Brussels Call – Apelo de Bruxelas“, com dezenas de Eurodeputadas/os e mais de 200 organizações da sociedade civil, esta nova campanha apela à ação ao nível da UE e dos Estados-Membros para concretizar uma União Europeia livre de exploração sexual e tráfico de seres humanos. A “Brussels’ Call – Apelo de Bruxelas” propõe o Modelo da Igualdade como uma abordagem comprovada para combater a complexa questão da exploração sexual, com o objetivo de aumentar a consciencialização sobre as suas causas de fundo, bem como sobre os danos por ela causados.


Em Portugal, a Plataforma vai organizar nos próximos dias 31 de julho e 1 de agosto de 2021, em Lisboa, o primeiro Encontro Nacional de Jovens Abolicionistas, inserido no EXIT. Durante estes dias, cerca de 30 jovens irão aprofundar, discutir e, em conjunto, gerar novos caminhos rumo à disseminação da mensagem deste programa. Estas e estes jovens estão ainda a dinamizar ações de conscientização multiplicadoras em escolas, universidades, associações e outros espaços frequentados pela juventude em Portugal, em São Tomé e Príncipe e na Bélgica. Este encontro contará ainda com o lançamento de uma mostra pela mão da artista Raquel Pedro que, através da ilustração, torna tangível os 18 mitos sobre a prostituição. A exposição estará patente no Centro Maria Alzira Lemos (Monsanto) durante o mês de agosto, disponível para visitas e, a partir dessa data, será itinerante, sob pedido de instituições.


O combate ao sistema da prostituição irá sempre depender da modificação de comportamentos, especialmente de jovens. Formar jovens e informá-las/os sobre o sistema da prostituição é essencial.


Recorde-se que em julho de 2020, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres lançou a campanha #SayNoToProstitution que visa contribuir para um debate público informado e consciente acerca da abolição do sistema da prostituição em Portugal. Com o mote “Se tens que pagar não vales nada”, a campanha procurou ilustrar a realidade do sistema de prostituição.




OFICINA GLOBAL: E cada um de nós, o que pode fazer para contribuir para a resolução destes problemas através da cidadania ativa?


ANA SOFIA: O combate ao sistema da prostituição irá sempre depender da modificação de comportamentos, especialmente de jovens. Formar jovens e informá-las/os sobre o sistema da prostituição é essencial. Traduzimos e adaptamos um kit da Generation Abolition e formamos um grupo de voluntárias/os sobre o sistema da prostituição e o abolicionismo feminista. Estas/es jovens estão a ser multiplicadoras/es em universidades, escolas e centros comunitários, em articulação com associações de mulheres, de jovens e de estudantes, de forma a explicar como o sistema da prostituição é prejudicial para a igualdade entre mulheres e homens, raparigas e rapazes. Cada uma e cada um de nós nos espaços em que intervém pode fomentar encontros, debates e reflexões que podem ser dinamizados por este conjunto de jovens.


OFICINA GLOBAL: Para além do documentário “O Consentimento Não Se Compra”, recomenda algum recurso adicional (leitura, documentário, etc.) para aprofundar os conhecimentos sobre o tema?


ANA SOFIA: Recomendo os “18 Mitos sobre a prostituição”. Esta publicação desmonta 18 dos mitos mais comuns sobre a prostituição, organizados em torno das perguntas: “Uma escolha?”; “Liberdade sexual?”; “Utilidade social?” e “Utopia?”. No final, é apresentada uma avaliação comparativa dos resultados de dez anos de políticas públicas opostas: Suécia (abolicionismo do sistema da prostituição) e Holanda (regulamentação do sistema da prostituição).


Recomendo, também ouvir a Sabrina Valisce, que trouxemos a Lisboa há dois durante a primeira conferência internacional abolicionista em Portugal. Ela esteve na prostituição na Nova Zelândia, um país no qual vigora a política da descriminalização total. É uma das muitas sobreviventes do sistema prostitucional vocais a nível mundial na defesa do abolicionismo. De resto há muitos recursos que vale a pena explorar no site exitprostitution.org.



Para saber mais sobre o tema, não deixe de conferir o documentário “O Consentimento Não se Compra”.

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