Agenda 2030Educação


O objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) número 4, Educação de Qualidade, começa dizendo que “Até 2030, [devemos] garantir que todas as meninas e meninos concluam a educação primária e secundária, que deve ser gratuita, equitativa e de qualidade e produzir resultados de aprendizagem relevantes e eficazes.”. Neste artigo, Paulo Feytor Pinto parte da política linguística em países africanos onde o português é a única língua oficial e de ensino (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) para refletir sobre duas dimensões da atual política linguística externa da cooperação portuguesa: a sua política bilateral com cada um dos cinco países e a política multilateral no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na sua análise, publicada inicialmente em formato de artigo científico na revista Ñemitỹrã, Revista Multilingüe de Lengua, Sociedad y Educación, o autor procura responder à seguinte pergunta: qual será então a política linguística que pode melhor garantir um ensino equitativo e de qualidade com resultados eficazes?


Língua materna e educação de qualidade


Desde 1953, a comunidade internacional reconhece que uma educação de qualidade é uma educação na língua falada em casa, a qual os alunos já dominam antes de chegar à escola. Naquele ano distante, a UNESCO reconheceu a vantagem ou contributo da língua materna para uma educação de qualidade, que atualmente podemos desdobrar em três fatores fundamentais. Primeiro, porque a língua materna é uma ferramenta cognitiva disponível para todos os alunos que permite uma aprendizagem eficaz. Em segundo lugar, há uma dimensão de equidade social ao oferecer a cada aluno a possibilidade de usar essa ferramenta. Em terceiro, o ensino na língua materna favorece a manutenção do multilinguismo e, portanto, da diversidade linguística na comunidade.


Há muito que foi estabelecida uma relação entre o desenvolvimento económico dos países protestantes do norte da Europa e a adoção precoce das línguas maternas como língua de escolarização de modo a garantir a leitura da Bíblia, por oposição aos países católicos do sul europeu, com um desenvolvimento mais lento e tardio, onde o latim se manteve durante muitíssimas décadas como língua de escolarização. Por exemplo, enquanto nos Países Baixos, o neerlandês passou a ser a língua da escola nos primeiros anos do século XVII, em Portugal, a alfabetização em português foi introduzida, pelo Marquês de Pombal, apenas em 1759. Em 2019, os Países Baixos eram o 10º país do mundo com mais elevado índice de desenvolvimento humano (IDH), enquanto Portugal ocupava o 40º lugar.


Todos os países com índice de desenvolvimento humano (IDH) muito elevado são países em que a generalidade das crianças usa na escola a mesma língua que usa em casa.


É evidente, porém, que é difícil estabelecer uma relação direta causa-efeito entre língua da escola e desenvolvimento uma vez que muitos outros fatores, nomeadamente culturais, políticos, económicos e geográficos, podem ser igualmente relevantes. Mesmo assim, constata-se que todos os países com IDH muito elevado, independentemente de outras características e evolução ao longo da história, são países em que a generalidade das crianças usa na escola a mesma língua que usa em casa.


A diversidade de línguas maternas nos PALOP


Tendo presente a importância das línguas maternas para uma educação de qualidade, comecemos, então, “o caminho de um maior conhecimento das línguas” dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), da sua diversidade e dos seus usos na comunidade e na escola. As línguas de cada país são apresentadas por ordem de importância demográfica, sabendo que a identificação das línguas e dos seus falantes é uma tarefa problemática. A designação de cada idioma é aqui registada no próprio idioma (Tabela 1).


Tabela 1 – Línguas dos PALOP
Fonte: Várias (cf. artigo original)


No conjunto dos cinco PALOP onde o português é usado, são faladas pelo menos 30 línguas africanas por mais ou menos 45 milhões de pessoas.


O único dos cinco PALOP onde o português é a língua materna maioritária é São Tomé e Príncipe; em Angola e Moçambique, o português é a principal língua veicular e a única falada em todas as regiões dos dois países. Tanto em Cabo Verde como na Guiné-Bissau, a língua veicular dominante não é o português. Cabo Verde é um caso curioso: é o país com menos diversidade linguística (o kabuverdianu é a língua materna de 100% da população), mas o português continua a ser a única língua oficial de ensino.


No conjunto dos cinco PALOP onde o português é usado, são faladas pelo menos 30 línguas africanas por mais ou menos 45 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 70% da população. Em cada um destes países, o português, sendo a única língua oficial, tem funções diferentes e interage com diferentes línguas, mas, em todas elas, a língua de escolarização do ensino regular é o português.


Representação da educação de qualidade na cooperação bilateral portuguesa


Vejamos agora, com base num texto multimodal, visual e verbal, editado pelas autoridades portuguesas, qual é a representação dominante em Portugal daquilo que é uma educação de qualidade que promove o desenvolvimento humano nos países amigos com os quais coopera. O texto multimodal é uma fotografia com sobreposição de um texto verbal descontínuo digitalizado (Figura 1).


Figura 1 – Representação portuguesa da educação nos PALOP
Fonte: Camões ICL (2015). Relatório de Atividades 2014 – Síntese


A língua ensinada é o português, numa aula de gramática, da parte mais tradicional da gramática. Trata-se da conjugação tradicional do verbo, já que atualmente a segunda pessoa do plural apresentada, “vós sois”, quase ninguém o usa. É uma forma que persiste nas gramáticas portuguesas e nos livros didáticos de ensino do português como língua materna, mas não nos de português como língua segunda, adicional ou estrangeira. A metodologia também parece tão tradicional quanto possível: a professora apresenta o paradigma verbal, que os alunos irão repetir oralmente para posterior memorização e talvez reprodução nas provas de avaliação.


Semelhante à da época colonial que terminou nos anos 70 do século passado, a política de exclusividade do português no ensino básico regular, adotada pelos cinco países africanos e apoiada por Portugal e pelo Brasil, além de contribuir para o insucesso escolar, também contribui para a substituição das línguas africanas pelo português.


Em síntese, para os portugueses, quer para o cidadão comum, quer na regulamentação legal, um ensino de qualidade nos países africanos de língua oficial portuguesa é um ensino apenas em português e, além disso, em português de Portugal tal como é ministrado a alunos portugueses. Semelhante à da época colonial que terminou nos anos 70 do século passado, a política de exclusividade do português no ensino básico regular, adotada pelos cinco países africanos e apoiada por Portugal e pelo Brasil, além de contribuir para o insucesso escolar, também contribui para a substituição das línguas africanas pelo português.


Assimilação linguística: o caso de Moçambique


Moçambique é o PALOP que dispõe de dados estatísticos sobre competências linguísticas da população mais fiáveis e há mais tempo e também o único que tem um programa oficial de educação bilíngue em todo o país. Vejamos então o efeito da substituição ou assimilação linguística em Moçambique ao longo das últimas quatro décadas (Figura 2).


Figura 2 – Moçambique: falantes L1
Fonte: Várias (cf. artigo original)


Entre 1980 e 2017, o número de falantes nativos de português aumentou de 1,2% para 16,6%, ou seja, cerca de 14 vezes mais falantes nativos. Paralelamente, o número de falantes das línguas bantu como língua materna caiu de 98,8% para 81,1%. Isso significa que o português não cresce como L2, mas como língua materna em detrimento de uma língua africana. Ou como diz o escritor angolano José Eduardo Agualusa, falando do seu país, o “problema é que a expansão do português se fez à custa de outras línguas”. E disse-o num jornal português, no dia 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.


Alguns sinais de mudança: os planos de ação conjunta da CPLP


No contexto da CPLP e através do seu Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), os nove Estados membros parecem tentar adotar uma perspetiva diferente. Assim, aprovaram, na última década, três planos de ação conjunta para a língua portuguesa: o de Brasília, o PAB de 2010, o de Lisboa, o PALis de 2013, e o de Díli, o PADili de 2016.


No primeiro, de Brasília, são referidos os “contextos de aprendizagem multilíngues” nos países da CPLP e a necessidade de “compartilhar experiências já existentes em educação bilíngue”. No segundo, de Lisboa, reconhece-se que “as línguas nacionais (…) são língua materna de parte da população, que ou não fala português ou o usa apenas como língua veicular”, num contexto de “diversidade linguística no seio da CPLP” em que se devem “incentivar práticas de multilinguíssimo”. Por fim, o terceiro plano de ação de Díli, refere a importância do “ensino bilíngue para o desenvolvimento de competências linguísticas” e que o português deve ser ensinado como “língua materna, língua segunda, língua de herança e língua estrangeira” de acordo com os diversos contextos linguísticos. Os três documentos, porém, representam apenas intenções acordadas multilateralmente e não se traduzem em leis internas em cada um dos nove países.


Uma política linguística ambígua da cooperação portuguesa


A efetiva contribuição portuguesa para uma educação de qualidade em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, implementada no âmbito da cooperação bilateral, é o apoio exclusivo ao ensino da língua portuguesa. Desta forma, a imensa diversidade linguística dos alunos é tratada de forma igualitária – o mesmo para todos – tendo em vista a assimilação linguística e, em última análise, o desaparecimento do multilinguismo. Tudo como nos tempos coloniais! No entanto, igualdade e assimilação nunca são referidas na legislação portuguesa. Em consonância com os objetivos de desenvolvimento sustentável são utilizadas, mas de forma errónea, equidade e inclusão.



Existe, portanto, uma clara ambiguidade na política de língua da cooperação portuguesa (…) entre uma prática bilateral de tons coloniais e um discurso multilateral de acordo com os princípios consagrados pela comunidade internacional.


Já no caso da política multilateral no âmbito da CPLP, como vimos, Portugal afirma apoiar uma educação bilíngue que garanta a igualdade de acesso ao conhecimento, a inclusão e, portanto, também o multilinguismo dos países e o plurilinguismo dos seus cidadãos.


Existe, portanto, uma clara ambiguidade na política de língua da cooperação portuguesa, ambiguidade que parece ser partilhada por todos os países africanos da CPLP. Ambiguidade entre uma prática bilateral de tons coloniais e um discurso multilateral de acordo com os princípios consagrados pela comunidade internacional.



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