Descolonizar o DesenvolvimentoHansel Obando e Maria Faciolince

Este artigo foi publicado originalmente pelo blogue Convivial Thinking. Leia artigo em inglês aqui. A tradução é de responsabilidade da Oficina Global. Créditos da imagem em destaque: “Não é começar desde o zero – é construir sobre as práticas e as ideias que floresceram nas rachaduras de tantas crises. Redefinir o desenvolvimento requer desafiar nossos saberes e prácticas, como nos relacionamos, como dividimos os recursos e como pensamos”, de Hansel Obando e Maria Faciolince como parte da série “Development’: A Visual Story of Shifting Power”, CC BY-NC-SA 4.0.


Recentemente, participei de um workshop de ONGs, onde um grupo grande de oficiais e representantes de projetos de ONGs alemãs se reuniu para discutir tendências e desafios do setor. Um deles foi “Pós-colonialismo” (como um substantivo). À “nova tendência” foi atribuída a questão norteadora de “Como seria, idealmente, a cooperação para o desenvolvimento sensível ao pós-colonialismo?”.


Claro que sei que é injusto agrupar todos os trabalhadores de desenvolvimento e ajuda humanitária na mesma caixa. Muitos são críticos em relação a seu próprio papel e trabalho, bem como em relação à maneira como isso afeta os outros. Muitos pensam e refletem sobre como os esforços bem-intencionados de sua organização para construir a igualdade podem, por sua vez, criar novas desigualdades. E, claro, também sei que muitas vezes os trabalhadores de ONGs se sentem divididos entre a forma como gostariam de planejar suas ações e a maneira como isso é imposto pelos próprios doadores e diretrizes de financiamento. 


Saí da reunião com uma sensação de desconforto e mal-estar. E com o perigo de homogeneizar e estar ciente de que este pode ter sido apenas um instante não representativo, acredito que a experiência ainda confirma que há um imaginário quadrado (em inglês, box-headedness – um termo cunhado por Vanessa Andreotti) fundamental na forma como muitos profissionais das ONGs da Europa Ocidental pensam e entendem o “desenvolvimento”. Este imaginário quadrado tem a firme convicção de que a) o “desenvolvimento” é universal e normativamente bom e desejável, b) que o “desenvolvimento” pode ser direcionado por meio de intervenção e c) que há uma expertise no Norte que é desesperadamente desejada em outros lugares. Quase 30 anos atrás, N’Dione et al. descreveu a “cultura do desenvolvimento” como englobando uma “concepção econômica do tempo, o culto das estatísticas e da competição entre os indivíduos, a mercantilização de pessoas e bens, a compartimentação da vida”. Os mesmos princípios ainda parecem ser verdadeiros na forma como a maioria dos programas e projetos de “desenvolvimento” são concebidos e implementados. O confronto verdadeiro e sincero dos valores subjacentes à promoção do “desenvolvimento” é uma questão existencial para o trabalho das ONGs do Norte. Que implicação isso teria para sua legitimidade se a), b) e c) não fossem tão verdadeiras quanto presumidas?


Prosperidad, de Hansel Obando e Maria Faciolince
Créditos da imagem: “Prosperidad”, de Hansel Obando e Maria Faciolince como parte da série “Development’: A Visual Story of Shifting Power”, CC BY-NC-SA 4.0.


A crítica fundamental formulada pela escola e pelo ativismo pós e decolonial certamente não é uma “tendência” que o setor do “desenvolvimento” pode seguir e, eventualmente, marcar na caixa de seleção como género, capacitação, participação e sustentabilidade. Em vez disso, a crítica pós-colonial vai ao cerne. Exige exploração e análise das raízes das desigualdades globais e estruturais, opressões, extrações, discriminações, marginalizações e silêncios, e suas causas históricas. “Desenvolvimento”, por outro lado, é um conceito mais do que questionável, um termo semelhante a uma ameba que carece de qualquer significado real e que repetidamente faz falsas promessas. 


Um participante disse: “Não podemos perder um tempo infinito refletindo sobre nós mesmos. Se continuarmos fazendo isso, não teremos tempo para fazer nosso trabalho real – projetos”. Mas qual é o trabalho real das ONGs de “desenvolvimento” sediadas no Norte Global? Vamos supor – pelo menos foi isso que percebi nas discussões no workshop – que é fazer o bem e querer contribuir para uma vida melhor para todos neste planeta.


A crítica fundamental formulada pela escola e pelo ativismo pós e decolonial certamente não é uma “tendência” que o setor do “desenvolvimento” pode seguir e, eventualmente, marcar na caixa de seleção como género, capacitação, participação e sustentabilidade. Em vez disso, a crítica pós-colonial vai ao cerne. Exige exploração e análise das raízes das desigualdades globais e estruturais, opressões, extrações, discriminações, marginalizações e silêncios, e suas causas históricas.


A Agenda 2030, segundo a qual muitas ONGs agora alinham seu programa de trabalho, afirma estar “Transformando nosso Mundo”. Resolve “libertar a raça humana da tirania da pobreza”, fazendo com que pareça que a pobreza é uma força sombria que se abateu sobre a humanidade e por cujo surgimento ninguém tem qualquer responsabilidade. Os ODS podem ter elevado as promessas: alfabetização universal, saúde e proteção social, bem-estar físico, social e mental e muito mais. Mas, assim como quaisquer intervenções, programas e projetos de “desenvolvimento” das últimas décadas, não vão à raiz da pobreza: desigualdades estruturais, divisões de poder político e econômico, injustiça distributiva. Nas palavras de Gurminder K. Bhambra, professor de estudos pós-coloniais da Universidade de Sussex, a “combinação inextricável da retórica da modernidade (progresso, desenvolvimento, crescimento) e a lógica da colonialidade (pobreza, miséria, desigualdade) deve ser central para qualquer discussão sobre as desigualdades globais contemporâneas e as bases históricas de seu surgimento”.


Refletir sobre o próprio papel, poder e privilégio, especialmente, mas não apenas no que diz respeito à base histórica e às continuidades coloniais do “desenvolvimento”, não é um exercício fútil e nem o último passo, mas inevitavelmente o primeiro no desejo de querer contribuir para um mundo mais justo. Como alguém que é privilegiado, bem-educado e branco – na verdade, o trabalhador humanitário típico da Europa Ocidental – algumas das perguntas podem ser as seguintes:


  • Quais são os meus/nossos privilégios (brancos) e como podemos usá-los de maneira sensível e produtiva? Como perpetuamos e reproduzimos estereótipos e suposições racistas?

  • E quanto à discriminação estrutural e interseccional em minha própria sociedade?

  • Como está meu país em termos de modos imperiais de vida? Como isso contribui para a pobreza em outros lugares? 

  • Como parte da sociedade civil, precisamos ir a outro lugar para incitar e promover mudanças positivas, ou devemos começar “em casa”? 

  • E com relação ao trabalho no terreno: Qual é o benefício real que tenho a oferecer aos outros? Por que minha presença ou intervenção é necessária em um contexto que não é o meu? Minha/nossa intervenção muda alguma coisa na raiz das desigualdades ou apenas mantém um status quo, se é que o faz?


Refletir sobre o próprio papel, poder e privilégio, especialmente, mas não apenas no que diz respeito à base histórica e às continuidades coloniais do “desenvolvimento”, não é um exercício fútil e nem o último passo, mas inevitavelmente o primeiro no desejo de querer contribuir para um mundo mais justo.


Voltando à questão inicial do workshop de “Como seria a cooperação ideal para o desenvolvimento sensível ao pós-colonialismo?”, a resposta só pode ser que nem precisamos de uma redefinição de “desenvolvimento”, nem de alguma sensibilidade simbólica adicional. Levar a sério a crítica pós-colonial deve significar orientar as ações pelo desejo de justiça global, e não mais pelo “desenvolvimento”.


Se te interessas por este tema, a Oficina Global sugere a leitura dos outros conteúdos do Convivial Thinking, em inglês, e, em português, do artigo Descolonizando a ajuda internacional, mais uma vez, de Paul Currion.

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