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O negócio inacabado da descolonização é o pecado original da indústria da ajuda internacional moderna.

Este artigo foi publicado originalmente pelo The New Humanitarian, uma agência de notícias especializada em reportar crises humanitárias. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.


Este ano, os apelos à reforma do sistema humanitário estão a proliferar. O que é invulgar é que não são apenas apelos a soluções tecnocráticas, mas a um envolvimento urgente com questões do mundo real: um novo modelo de ajuda humanitária e de ajuda ao desenvolvimento que coloque o anti-racismo no seu centro. 


Há dois anos, escrevi um artigo para o Overseas Development Institute, Network Humanitarianism (Redes Humanitárias), sobre os desafios sistémicos enfrentados pelas organizações humanitárias, as origens subjacentes desses desafios, e possíveis soluções. Esse artigo foi amplamente ignorado, mas era exatamente o que as pessoas vinham pedindo – um novo modelo para a ajuda humanitária. 


Não usei a palavra “racismo” uma única vez nesse artigo.  


Olhando para trás, percebo que nunca escrevi sobre o racismo na indústria da cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária. No entanto, como filho de um casamento misto, tenho lutado com as minhas próprias perguntas sobre racismo durante a maior parte da minha vida. Na minha vida pessoal, nunca tive medo de falar contra o racismo, mesmo à custa de amizades. Na minha vida profissional, entretanto, nunca tive medo de falar sobre outras questões, mesmo à custa da minha carreira. 


Por isso, a pergunta que agora me faço é: Porquê? Por que razão nunca coloquei esta questão crítica na linha da frente da minha escrita? 


Não o fiz porque o meu trabalho se centrou naqueles ajustes tecnocráticos na reforma da ajuda internacional. Não o fiz porque pensava que a indústria humanitária e da cooperação não estava preparada para falar sobre racismo. Não o fiz porque pensava que não me cabia a mim fazê-lo. Não o fiz porque não queria ofender os meus amigos e colegas. Não o fiz porque mais ninguém estava a falar sobre isso, pelo menos não em voz alta. Não o fiz porque fui um covarde. 


Assim, na minha vida profissional falei a mesma língua que todos os outros – sobre “localização”, por exemplo, cujo objetivo é assegurar que a capacidade esteja com os mais próximos das populações afetadas por crises. É um objetivo admirável quando visto de um ângulo; mas de outro ângulo, levanta-se a questão de porquê é que essa capacidade não existe, e porque é que parece ser tão difícil de alcançar. Deste ângulo, a “localização” pode parecer suspeitosamente como a linguagem utilizada para evitar falar dos efeitos persistentes do racismo. 


Como produto dessa mesma indústria da ajuda internacional, fiz o mesmo tipo de substituição retórica há cinco anos quando escrevi uma coluna para esta publicação, Why are humanitarians so WEIRD? (Por que é que os trabalhadores humanitários são tão esquisitos?) O argumento básico era que os trabalhadores humanitários internacionais são WEIRD* – Ocidentais, Educados, Industrializados, Ricos e Democratas – e que “mesmo os trabalhadores humanitários que não são propriamente WEIRD – os profissionais nacionais que fazem a maior parte do trabalho – ainda trabalham em organizações humanitárias WEIRD”. 


O que não reconheci por escrito naquela coluna foi que WEIRD era a minha forma de falar sobre racismo sem usar a própria palavra. A linguagem utilizada pela indústria deixou-me incapaz de reconhecer uma conversa sobre racismo, mesmo quando estava mesmo à minha frente. 


Este problema afetou toda a gente, incluindo os profissionais não pertencentes à WEIRD, que tiveram dificuldade em levantar estas questões, em parte porque não havia uma linguagem comum para as discutir. Ainda em 2015, penso que a comunidade humanitária não tinha o vocabulário para esta conversa; aqueles que a levantaram como uma questão foram educadamente tolerados em vez de se envolverem ativamente com ela. 


Em 2020, penso que finalmente temos o vocabulário, mas suspeito que ainda não estamos preparados para a conversa. Não acredito que as organizações e profissionais WEIRD compreendam realmente aquilo de que estamos a falar quando falamos de racismo: o assunto inacabado da descolonização, o pecado original da indústria da ajuda internacional moderna como descendente direto dos antigos impérios europeus. 

A linguagem utilizada pela indústria da ajuda internacional deixou-me incapaz de reconhecer uma conversa sobre racismo, mesmo quando estava mesmo à minha frente. 


Pode-se ver esta linha de descendência a partir de muitos ângulos: na forma como os fluxos de ajuda ao desenvolvimento frequentemente mapeiam as relações de soft power entre as antigas potências coloniais e as ex-colónias; na forma como a trajetória profissional de muitos trabalhadores de coooperação para o desenvolvimento se assemelha muitas vezes à dos administradores coloniais; na forma como o “beneficiário” foi construído como um Outro pós-colonial; na forma como a sociedade civil local é moldada para se ajustar ao padrão da “ONG” em vez de formas mais apropriadas culturalmente ou politicamente mais eficazes; na forma como os profissionais “nacionais” devem aprender a conformar-se com as normas “internacionais” a fim de lhes ser permitido o acesso a posições de poder no seio de organizações internacionais. 


A minha preocupação é que a abordagem da questão do racismo na indústria da ajuda internacional não vá suficientemente longe. A linguagem do antirracismo pode e será cooptada por processos empresariais – a ronda interminável de cursos de formação, workshops, e conferências que todos nós conhecemos. Assim, embora não consiga imaginar a descolonização da cooperação para o desenvolvimento sem que as organizações de cooperação se tornem antirracistas, consigo imaginar uma organização de cooeperação antirracista que não trabalhe para a descolonização da ajuda internacional. Na verdade, posso imaginar o contrário: uma organização de cooperação antirracista que continua a funcionar como uma extensão involuntária do império. 


Por exemplo, o movimento Black Lives Matter (BLM) começou com as preocupações muito específicas – e muito urgentes – das comunidades negras nos Estados Unidos sobre a brutalidade policial. O que BLM significa no Quénia ou na África do Sul devem ser os ativistas desses países a dizer. A brutalidade policial nesses países é uma preocupação igualmente urgente, mas tem a relação com a supremacia branca que possui nos EUA. 


No entanto, se o antirracismo for enquadrado numa linguagem distintamente estado-unidense, e enquanto os EUA – apesar do seu rápido declínio – são efetivamente a única potência imperial que resta, a exportação dessa linguagem para outros contextos corre o risco de alargar a hegemonia cultural dos EUA. Esta é uma forma de violência epistémica em si: nas palavras de Ngũgĩ wa Thiong’o, “a língua carrega… todo o corpo de valores pelos quais passamos a perceber-nos a nós próprios e a perceber o nosso lugar no nosso mundo”. 


O fio condutor que pode ligar os movimentos BLM nesses e noutros países é que as forças policiais das antigas colónias herdaram estruturas e discursos coloniais, e são, portanto, descendentes do colonialismo que deu forma institucional ao racismo. E se a indústria da ajuda é igualmente descendente das estruturas e discursos coloniais, isto oferece uma pista para a reforma que a indústria precisa adotar: não apenas antirracismo, mas descolonização. 


O antirracismo é necessário, mas não suficiente para que a indústria de ajuda internacional faça as mudanças fundamentais para ir além do seu legado colonial. 


A descolonização significa que a indústria humanitária e da cooperação deve levar a sério as recomendações do teólogo e crítico social Ivan Illich. Falando em 1968, Illich disse aos voluntários estado-unidenses no México que deveriam “renunciar voluntariamente ao exercício do poder que o ser [WEIRD] lhes dá… renunciar ao direito legal de impor a sua benevolência… de reconhecer… a sua incapacidade de fazer o ‘bem’ que pretendiam fazer”. 


A primeira fase de descolonização foi dolorosa – tão dolorosa que ficou inacabada. Por isso, agora precisamos de uma segunda fase.  


A conversa sobre antirracismo deixa muitas pessoas desconfortáveis. A conversa sobre descolonização pode fazê-las sair da sala. Mas talvez seja essa a intenção. 


* Weird em inglês significa esquisito. O autor faz um trocadilho com a palavra ao formá-la com as inicias das palavras Western (ocidental), Educated (escolarizado), Industrialized (industrializado), Rich (rico) e Democrat (democrata), se referindo a organizações e trabalhadores provenientes de países do norte.


Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado no The New Humanitarian.




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