Agenda 2030Direitos HumanosIgualdade de GéneroMigrações

Este texto se trata de uma síntese do trabalho final de pesquisa de Carolina de Aguiar Lopes para a Especialização em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais e a Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais no Brasil, intitulado “Acesso à justiça de gênero no Brasil e a Convenção de Belém do Pará: o caso das migrantes e refugiadas venezuelanas”. O trabalho foi impulsionado pela carência de profundidade, sobretudo no que tange a relação entre gênero, Estado e políticas públicas, nos estudos migratórios no contexto latinoamericano. Créditos da imagem: “Refugiadas venezuelanas em Boa Vista, Brasil”, de Marcelo Camargo via Agência Brasil CC BY 3.0 BR.


Duplamente vitimizadas pelo deslocamento forçado e por serem mulheres, refugiadas são expostas a vulnerabilidades multidimensionais referentes à questões culturais, socio-econômicas e de discriminação de gênero. No que tange a violência de gênero, essas se mostram à margem do acesso à justiça de gênero. Esse texto busca mostrar que os pássaros de passagem também são mulheres e devem ter seus direitos assegurados como qualquer outra.  


É estranho pensar que as mulheres são reconhecidas como seres humanos dignos de direitos fundamentais somente desde a Conferência Mundial de Viena, em 1993, quando os direitos humanos foram legitimamente estendidos para as mulheres


Já no continente americano, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como a Convenção de Belém do Pará (1994), foi pioneira em reiterar essa ampliação de acesso aos direitos humanos na América Latina e em firmar um compromisso do Estado na interferência e na responsabilidade perante casos de violência de gênero. Além disso, essa convenção vira os holofotes, pela primeira vez, para a situação particular das mulheres migrantes e refugiadas. Mesmo analisando as migrações como o ato de se deslocar de um país para o outro, é importante ressaltar a diferença entre migrante e refugiada, apesar da situação das mulheres em ambas as situações serem semelhantes.


Migração é caracterizada como o movimento de uma pessoa ou grupo de indivíduos de um território a outro com a intenção de estabelecer-se indefinida ou temporariamente no lugar de destino. Para as mulheres, o deslocamento voluntário pode ser justificado pela reunificação familiar, a busca por trabalho, melhores condições econômicas e uma maior independência familiar.


Quando a migração é forçada, o deslocamento é reconhecido como refúgio e costuma ser motivado por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas, grave e generalizada violação de direitos humanos, conflitos armados ou até mesmo opressões de gênero como casamentos forçados, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (1951).  Dessa maneira, o refúgio acaba atingindo de maneira profunda grupos mais vulneráveis como de mulheres e crianças, uma vez que esse movimento causa maior exposição à descriminação e exploração no território destino.


Quando refletimos sobre mulheres migrantes e refugiadas no Brasil, inevitavelmente pensamos nas venezuelanas. A migração venezuelana se trata do maior êxodo da história recente da América Latina e uma das maiores crises migratórias do mundo. Segundo a Plataforma de Coordenação para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V), há mais de 261 mil migrantes e refugiados vindos da Venezuela no Brasil, sendo 96 mil deles solicitantes de refúgio, 145 mil com visto temporário ou definitivo de residência no Brasil e 46 mil refugiados reconhecidos.


O que impulsiona essas mulheres a cruzar a fronteira pelo Norte do Brasil é uma extensa e severa crise sócio-econômica e política na Venezuela, marcada por drásticas violações do sistema democrático e pela redução de meios de vida, empregos e serviços essenciais. Buscando melhores condições de vida ou apenas a sobrevivência, essas mulheres encontram no país vizinho uma oportunidade de recomeçar.


As violências de gênero contra mulheres e meninas em deslocamento são multidimensionais. Podemos categorizá-las da seguinte forma: 

1. Violência cultural: expressa na opressão sofrida dentro do próprio núcleo familiar, o que faz com que as mulheres busquem refúgio em outro país, onde sofrem com dificuldades de adaptação e integração.


2. Violência social: inclui a manutenção da pobreza; a dificuldade de acesso a documentação, serviços públicos, de justiça de gênero; condições precárias de moradia; o cerceamento de direitos e o acesso às políticas públicas.


3. Violência psicológica: inicialmente apresentada pela opressão e perseguição sofrida no país de origem, traduzida em medo, isolamento, dificuldades de integração, estigmatização social, e outros.


4. Violência sexual: caracterizada pelo estupro, a exploração sexual e o tráfico a mulheres e meninas para fins sexuais e o assédio no local de trabalho. 


Essas diversas violências são impulsionadas por uma série de razões. A maior exposição dessas mulheres e meninas ocorre dependendo do lugar onde ela habita, do seu nível de entendimento do português, da sua rede de contatos sociais e do grau de estigmatização sofrido em razão da condição de mulher refugiada. Cada ocasião oferece um terreno para uma categoria de violência, o que influencia diretamente sobre o processo de adaptação da migrante à nova realidade.


Expostas a tantas vulnerabilidades, como a justiça de gênero alcança essas mulheres? Até que ponto o Brasil dá respaldo para elas, como firmado na Convenção de Belém do Pará?


A inserção da Convenção de Belém do Pará na legislação brasileira foi realizada de forma brusca e tardia. O país precisou aguardar 12 anos para que a Lei Maria da Penha (2006) entrasse em vigor, lei essa que marcou a mudança de paradigma do enfrentamento da violência de gênero, apesar de não mencionar o caso de mulheres migrantes e refugiadas em seu texto.



O que impulsiona essas mulheres a cruzar a fronteira pelo Norte do Brasil é uma extensa e severa crise sócio-econômica e política na Venezuela, marcada por drásticas violações do sistema democrático e pela redução de meios de vida, empregos e serviços essenciais. Buscando melhores condições de vida ou apenas a sobrevivência, essas mulheres encontram no país vizinho uma oportunidade de recomeçar.


Embora a Lei migratória (2017) reconheça o acesso igualitário e livre dos migrantes legais à serviços, programas e benefícios sociais, assistência jurídica integral pública, direitos e liberdades, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) todas as pessoas vindas da Venezuela para o Brasil enfrentam uma grave e generalizada violação de direitos humanos, sobretudo as sem documentos.


Uma pesquisa realizada entre janeiro e fevereiro de 2020, realizada pelo UNFPA, ACNUR e União Europeia, buscou identificar e caracterizar a violência de gênero nas duas cidades brasileiras que mais acolhem migrantes e refugiadas venezuelanas. Cerca de 93,4% das venezuelanas entrevistadas tinham documentação e 88,1% o cartão do Serviço Único de Saúde, sendo possível o acesso a serviços de proteção à violência de gênero.


No entanto, grande parte das mulheres vítimas de violência de gênero não procurou serviços de proteção e não soube especificar o motivo. Essa subnotificação justifica-se, principalmente, pelo medo do estigma, da retaliação por conta do agressor e do “refoulement” ao buscar um apoio institucional, isto é, o receio de ser enviada ao país de origem.


Sem dúvidas, a maior dificuldade dessa população em encontrar serviços de ajuda ainda reside na falta de meios de informação seguros e confiáveis, assim como na dificuldade de construir redes amigáveis de atendimento. Os impedimentos no acesso a informações confiáveis, assim como os obstáculos para acessar serviços de proteção não só justificam a dificuldade de acesso à justiça de gênero como também estimulam a perpetuação do ciclo da violência.


Além disso, ainda falta a inclusão das mulheres migrantes e refugiadas nas políticas públicas brasileiras. Parte da ausência dessas políticas pode ser justificada pela falsa impressão de que essas pessoas não são cidadãs dignas de direitos por estarem de “passagem” no país. No entanto, é de suma importância que a saúde, o psicológico e o físico dessas mulheres sejam cobertos para além da legislação nacional, com proteção efetiva e especializada.



Sem dúvidas, a maior dificuldade dessa população em encontrar serviços de ajuda ainda reside na falta de meios de informação seguros e confiáveis, assim como na dificuldade de construir redes amigáveis de atendimento. Os impedimentos no acesso a informações confiáveis, assim como os obstáculos para acessar serviços de proteção não só justificam a dificuldade de acesso à justiça de gênero como também estimulam a perpetuação do ciclo da violência.


Dessa maneira, a situação das venezuelanas no Brasil ainda apresenta a vantagem do país ter uma lei consolidada em relação aos casos de violência de gênero, mas ainda há muito o que ser feito para que as venezuelanas tenham acesso pleno à justiça de gênero no país, tendo protegidos seus corpos e dignidades.


Mas o que nós podemos fazer sobre isso neste Dia Mundial da* Refugiada*? Denunciar não somente o caso das venezuelanas no Brasil, como também de todas as refugiadas ao redor do mundo que têm direitos, como qualquer nativa, de não ser sujeita à violência de gênero. Vamos juntas?


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