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Lucas Chaud, aluno do Masters in Management no ISEG, escreve sobre desigualdade, tecnologia, inteligência artificial e direitos humanos a partir de uma reflexão sobre o escritor brasileiro Machado de Assis.


Machado de Assis é um desses autores atemporais. Suas obras não pegam poeira e são provocadoras, com interpretações sem término sempre que lidas. Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, lançado em 1880, recebeu em Junho do ano passado uma nova tradução ao inglês pela Penguin Books, sucesso de crítica e venda, esgotando seus exemplares na estreia tanto na Amazon quanto na Barnes and Noble.


Em Memórias Póstumas, o protagonista-narrador conta, já morto e em seu túmulo, sua biografia centrada em um Rio de Janeiro recém atingido por uma grande epidemia e às voltas com uma elite racista, decadente e conservadora. Realmente, 2021 feelings.


Machado nasceu no Morro do Livramento no Rio de Janeiro, pobre, negro, filho de um pintor de paredes e uma lavadeira emigrada dos Açores, neto de escravizados alforriados. Autodidata, foi tipógrafo, revisor de imprensa, jornalista, escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras. Há várias reflexões de como reproduzia a crítica social em seus textos e o destaque vai para uma primorosa fotografia da sociedade brasileira no “Diário do Rio de Janeiro”, em 1861:

“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”


O país oficial seria a classe dos privilegiados, da elite econômica e dos políticos (resultante dos outros dois), que atua por interesses próprios na perpetuação dessa composição. E o país real seria formado pela maior parte da população, marginalizada e invisibilizada na representação de seus interesses e anseios.


Há tempos venho pensando no significado e aumento da distância entre o Oficial e o Real, em muitas dimensões. Especialmente na área de tecnologia e conectividade, que vivi as entranhas e tenho maior proximidade e interesse em acompanhar. Um mundo em que se discute as implicações do 5G e que a capacidade computacional é medida em Qubits. Um mundo em que Inteligência Artificial (IA) não é sobre o Jude Law como Gigolo Joe, mas um hype (alerta de estrangeirismo proposital) que vem sendo alavancado e apropriado por indústrias que beiram a definição Machadiana: caricatas e burlescas.


Então como falar de 5G em um mundo onde metade da população não possui acesso básico à Internet? Não seria melhor discutir como viabilizar infraestrutura nessas localidades?


Não me levem a mal. Sou um aficionado por tecnologia e as possibilidades que são abertas a partir dela. Sei do impacto, sobretudo, educacional e transformador que um mundo hiper-conectado pode ter. Do quanto os diagnósticos de câncer, Alzheimer podem ser viabilizados para localidades remotas, sem infraestrutura, com softwares de IA operando em conjunto com médicos. Sou simpático à ideia de human + machine. Mas, quais pontes estamos efetivamente construindo para isso, para florescer o bom e suprimir o caricato? O quanto deixamos de ser oficiais para alcançarmos os reais? Ou, melhor: O quanto sentimos a realidade para moldar a oficialidade?


Vejamos o relatório de 2020 da UNESCO sobre o estado da conexão por banda-larga, uma década depois da formação de um Comitê específico para o tema:

  • 46.4% da população mundial ainda não tem acesso à Internet;
  • O número cresce para 53% em países em desenvolvimento;
  • E para 80.9% em países subdesenvolvidos (a definição de desenvolvimento é discutível, mas no relatório entende-se com o aposto “econômico”);
  • Traz ainda que somente 9.9% das casas em países com baixo rendimento possui conectividade;
  • E ainda mais, sobre a diferença de gênero na acessibilidade, o distanciamento entre homens e mulheres cresceu significativamente, de 11% em 2013 para 17% em 2019.


Então como falar de 5G em um mundo onde metade da população não possui acesso básico à Internet? Não seria melhor discutir como viabilizar infraestrutura nessas localidades? (E não, os satélites do Elon Musk não são a resposta). O perdão das dívidas regulatórias às prestadoras de serviço de telefonia em troca de benefícios sociais, parece pouco. Não seria hora de uma cooperação global para direcionar fundos visando uma equiparação para atingirmos algum anseio da verdadeira conectividade universal? A aproximação do real para o oficial precisa ser concreta, não dá mais para aceitar uma evolução tecnológica que acirra a exclusão e perpetua as desigualdades. Não dá para acreditar que William Gibson estava certo, que “o futuro já chegou, só não está uniformemente distribuído”.


E não que eu não goste de Machado. Só não gostaria que sua obra fosse assim tão presente em 2021.


Para além do post:

  • A Flora Thomson Deveaux, tradutora da versão recente de Memórias Póstumas de Brás Cubas, também é a pesquisadora por trás da brilhante minissérie em formato de podcast, Praia dos Ossos, que conta a história de como um feminicídio deu voz à uma chama do movimento feminista no Brasil e a discussão sobre justiça restaurativa;
  • O genial dramaturgo Ariano Suassuna, com uma história da sua posse à Academia Brasileira de Letras, dá vida à fala do Machado de Assis sobre país real e oficial de maneira extremamente bem-humorada aqui.

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