Política SocialTransformação

Este artigo foi publicado originalmente pelo From Poverty to Power. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.


Para aqueles de nós que trabalham com política pública e mudança social, existe um refrão comum de que “políticas públicas não devem ser politizadas”. Quando ouço isso, penso que significa que políticas públicas não devem depender de interesses políticos limitados. A politização de políticas públicas dessa forma é, talvez, aparente e relativamente “fácil” de detectar. 


Porém, há outro fenómeno mais sutil e difícil de discernir dentro do campo da política pública e mudança social, um fenômeno que aqui chamarei de politificação da mudança social. A politificação consiste na ideia de que a mudança social será o resultado de políticas públicas. Se a politização de políticas públicas atrela políticas a interesses políticos limitados, então a politificação da mudança social restringe a mesma a esses interesses políticos. 

A politificação da mudança social é, talvez, algo amplamente reconhecido por aqueles de nós que trabalham na área, mas certamente não é algo que tenha sido articulado de maneira clara até agora. Esta é minha débil tentativa de fazê-lo, não apenas como reflexão crítica das nossas próprias práticas acríticas na elaboração de políticas públicas, mas também como uma forma de diagnosticar meu próprio viés em relação a esse fenômeno (analisar algo não significa que estejamos livres de cair no mesmo erro). 


A anatomia da politificação 


Para começar, revisemos alguns aspectos – comportamentos e práticas, normas e narrativas – que ilustram e sustentam esse fenômeno.  


Primeiro, politificação define “resultados positivos” como um processo predominantemente baseado em documentos. Resultados positivos são considerados sinónimo de abordagens e soluções (preferencialmente rastreáveis a recomendações), inscritas com sucesso em propostas de políticas públicas. Embora o fenômeno não se trate de produzir documentos em si, ele se baseia em resultados positivos vinculados a benefícios e recompensas institucionais, mais do que na adoção dessas abordagens e soluções na prática. 


Em segundo lugar, promove uma cultura de celebração do acesso aos corredores do poder. Isto flui logicamente da primeira característica porque quanto mais importante a proposta de política pública, mais poder ela contém. Portanto, “resultado positivo” culmina no acesso a essas poderosas plataformas de políticas públicas. Isso não significa dizer que os compromissos com os poderes instituídos não sejam importantes, mas se forem aplaudidos como um fim em si mesmo, então esta é uma forma de politificação que sem dúvida devemos contestar. 


Terceiro, politificação apresenta uma narrativa que confere vantagens aos atores administrativos. Essa história apoia os interesses dos grupos sociais apenas quando eles convergem com os interesses dos atores administrativos, sem considerar outras questões cruciais para a mudança social. Muitas vezes, estes são contabilizados apenas quando se enquadram no posicionamento estratégico dos atores que definem as políticas públicas, os quais muitas vezes priorizam os seus interesses ou os das suas organizações. 


Quarto, pressupõe acriticamente a relação entre mudança de política pública e mudança social. Dado que as realizações de políticas públicas dependem das decisões dos poderosos, e não dos impotentes, as ligações com mudança social (sem falar na justiça) são frequentemente reduzidas ou cortadas. Alguns vínculos entre política pública e mudança social são tidos como certos, apesar de pesquisas e verificações da realidade mostrarem que são tênues. A articulação dessas ligações é frequentemente feita de maneira inadequada ou descartada como trabalho de outra pessoa (ou seja, deixe isso para aqueles que trabalham nessas coisas). 


Quinto, preocupa-se mais em justificar do que em aprender. Isto se completa durante a fase de monitoramento e avaliação do ciclo de políticas públicas. Quando o processo de mudança de política pública está desconectado do processo de mudança social, a aprendizagem fica restrita ao espaço das políticas públicas e a melhor forma de manobrar dentro deste, o que leva a um exercício de avaliação que é enviesado para justificar a existência dos atores de políticas públicas e as suas organizações dentro do próprio espaço de políticas públicas. 

“O dano mais imediato é que a mudança social desejada não ocorra, mas a mudança de políticas públicas construída como um resultado positivo dê uma falsa aparência de progresso.” 


Os danos da politificação  


O dano mais imediato é que a mudança social desejada não ocorra, mas que a mudança de políticas públicas construída como um resultado positivo dê uma falsa aparência de progresso. Isto se torna, então, base para mais financiamento de abordagens e soluções ineficazes, de modo a perpetuar um círculo vicioso de elaboração de política pública desvinculada das realidades dos grupos sociais representados.  


O fenômeno também preserva poder dentro de um circuito de políticas públicas que se auto-alimenta, sem necessariamente abrir novos espaços de representação. Considera-se que os atores político-administrativos representam aqueles que não possuem poder, mas nenhum – ou em casos raros, mínimo – esforço é feito para criar espaços onde os não-políticos possam representar a si próprios.  


O domínio de ferramentas, linguagem e inclinações do circuito das políticas públicas cria oportunidades para empreendimentos com fins lucrativos, tais como serviços de consultoria privada que praticam preços exorbitantes. Isto significa que os fluxos financeiros ficam retidos dentro deste circuito, enquanto os grupos sociais que são supostamente representados continuam a sofrer por causa disso. 


O que está por detrás disto? 


Aqui, quero esclarecer algo: não estou a sugerir que este fenômeno seja diretamente causado pela moralidade de atores político-administrativos. Em vez disso, quero fundamentar as minhas explicações sobre o que considero ser dois fatores interligados que produzem as condições necessárias para esse domínio das políticas públicas na mudança social, ou seja, a politificação da mesma. 

“Falta uma discussão em torno da mudança social que inclua uma variedade de perspectivas de classe.” 


O primeiro fator está relacionado com os valores e premissas que sustentam grande parte do financiamento no mundo das políticas públicas, os quais enfatizam a eficiência, os resultados tangíveis e o enquadramento input-output do mundo social. 


O segundo fator é a classe-mediarização do trabalho político, estimulada pelo aumento da burocracia no espaço político – escrita de subvenções, administração de projetos, condução de avaliações – que gera demanda por um determinado perfil de uma força de trabalho profissional formalmente educada. 


Estes dois fatores interagem para moldar as ações individuais, vistas pelos próprios atores administrativos como racionais e “normais” no seu trabalho cotidiano. Afinal, os financiadores querem que seus fundos sejam bem utilizados e ao mesmo tempo gerar resultados que possam ser medidos de forma tangível em documentos precisos. Isto é muito menos confuso quando comparado com as realidades do mundo social que não se conformam às estruturas e cronogramas dos projetos. 


Por outro lado, os profissionais de política pública precisam de se mover entre os requisitos de financiamento e suas próprias conceções (excessivamente de classe média) de “bom” trabalho e mudança. O que vejo aqui? Falta uma discussão em torno da mudança social que inclua uma variedade de perspectivas de classe. 


Invertendo o fenômeno  


Hesito em terminar com uma tentativa de oferecer sugestões concretas sobre o que fazer, em parte porque não quero dar a impressão de que este fenômeno possa ser desconstruído a partir de um certo número de etapas, propostas por um indivíduo igualmente suscetível às tendências da politificação. Como trabalhadores nesse espaço, não estamos imunes.  


Em vez disso, espero que esta reflexão provoque um diálogo mais amplo entre nós que trabalhamos na área, e também com aqueles fora dela, especialmente aqueles que afirmamos representar, a fim de pensar mais criticamente sobre como podemos recuperar o lugar da mudança social no espaço das políticas públicas. No final das contas, talvez, as nossas esperanças de mudança social comecem com a inversão do fenômeno que estrangula a mudança transformadora há demasiado tempo. 


Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado no From Poverty to Power.

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