COVID-19

Este artigo, publicado originalmente pelo site Africa is a Country, é um excerto de um texto mais longo, publicado no site Pandemic Discourses, um projeto de parceria entre o India-China Institute e o Graduate Program in International Affairs na The New School. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.


Os intelectuais africanos apelam a uma discussão diferente. Não será este o momento certo para impulsionar mudanças que têm frequentemente sido adiadas? 

Os intelectuais africanos apelam a uma discussão diferente sobre como responder à pandemia de COVID-19. Não será este o momento certo para impulsionar mudanças que têm sido frequentemente adiadas? Os líderes africanos revertem facilmente para um modo de resposta, não em relação às crises que enfrentam, mas em relação aos conselhos que recebem. Talvez a COVID-19 possa ser o anúncio de uma transformação estrutural no continente. Admitindo que esta é uma crise demasiado boa para ser desperdiçada, aqui estão cinco razões para a utilizar para mudar de velocidade. 

Primeiro, a guerra comercial China-EUA que introduziu turbulência nos mercados mundiais, seguida pela guerra dos preços do petróleo entre a Arábia Saudita e a Rússia, previu que o fim do super ciclo de commodities em 2011 poderia tornar-se muito pior do que o previsto. Com os baixos preços históricos do petróleo Brent e os futuros do petróleo dos EUA a mergulharem abaixo de zero pela primeira vez na história em Abril, restam poucas dúvidas sobre a volatilidade de uma commodity que representa 40% das exportações africanas. Desde 2007, o volume das exportações de crude de África para o resto do mundo diminuiu acentuadamente. As importações da China estão a diminuir, na sequência de diminuições nas exportações para os EUA e outros países. Com 7,5% das reservas mundiais de petróleo e 7,1% das reservas de gás, a África nunca será um grande ator capaz de determinar preços ou ocupar um lugar de destaque neste mercado. A COVID-19 trouxe-nos essa mensagem. 


Os preços da produção de energia renovável, por outro lado, estão a tornar-se cada vez mais competitivos, ultrapassando muitas vezes as matrizes dos combustíveis fósseis. Isto faz com que seja o momento certo para mudar para uma base de produção e consumo mais limpa e com baixas emissões de dióxido de carbono. A África tem o luxo de poder acelerar a sua industrialização através de soluções mais ecológicas, tanto em termos de energia como de infraestruturas sustentáveis. Preços extremamente baixos do petróleo e do carvão (associados à procura em depressão nalguns países) traduzem-se numa oportunidade única para abandonar um consumo de combustíveis fósseis fortemente subsidiado e torna apelativa a opção de desmantelar os sistemas fiscais bizantinos ligados ao combustível nas bombas. 


Em segundo lugar, apesar de ser uma questão tão dramática como a queda dos preços do petróleo e do gás, as outras mercadorias que compõem o grosso das exportações africanas, sejam estas metais e extrativos ou relacionadas com a agricultura e a pesca, geralmente expostas a elevados níveis de volatilidade, perderam imenso valor devido à COVID-19. Trinta e cinco dos 54 países do continente africano encontram-se na categoria dos altamente dependentes de produtos de exportação (países com 80% ou mais de dependência destas commodities). Esta característica colonial é hoje responsável por um comportamento de procura de renda e por esforços preguiçosos quanto à tributação interna. A COVID-19 demonstrou a fragilidade da trajetória de crescimento africana quando uma combinação de baixa procura, preços baixos e espaço fiscal limitado enfrenta qualquer tempestade económica, ainda mais uma tempestade perfeita. A COVID-19 envia uma mensagem poderosa aos líderes africanos: é preciso que eles se ajustem a um novo normal. 


No que diz respeito à segurança alimentar, o continente africano alberga mais de 874 milhões de hectares de terra adequados para a produção agrícola. Com menos de 10% da terra arável atualmente utilizada para a produção alimentar, há janelas de oportunidades de expansão, de modo a aumentar a produção agrícola local. Apenas 6% das terras aráveis em África são irrigadas, mas o continente tem potencial para irrigar quase 40 milhões de hectares (10%), duplicando a produtividade agrícola. 


Olhando para o potencial oferecido pelo estabelecimento da Área de Comércio Livre Continental Africana, o maior esforço deste tipo por parte de vários países e populações abrangidas, existe uma opção de utilizar formas de protecionismo inteligente para impulsionar os produtos comercializáveis de valor acrescentado intra-africano. Esta é uma oportunidade de transformação, começando com a necessidade imediata de abastecimento alimentar alternativo provocada pela rutura da COVID-19 das cadeias de valor e abastecimento existentes. Tempo para amar o próximo. 


Em terceiro lugar, as restrições recentemente introduzidas pelos EUA e países europeus à exportação de medicamentos vitais, reagentes, equipamento respiratório ou de proteção pessoal afetam fortemente os países africanos. É um alerta para refletir sobre a forma como o continente deve lidar com a regulamentação farmacêutica, aquisição e fabrico de medicamentos e produtos relacionados com a saúde em áreas críticas para o controlo de doenças e a proteção do bem-estar. 


A África representa 25% da incidência de doenças ao nível global, mas é responsável por menos de 1% das despesas globais com a saúde. Fabrica menos de 2% dos medicamentos que consome. Mais de dois terços dos casos de VIH no mundo e 93% das mortes devidas à malária ocorrem atualmente em África. Além disso, 40% da mortalidade infantil em crianças com menos de cinco anos de idade ocorre em África, principalmente devido a causas neonatais, e também a doenças como a pneumonia, diarreia, sarampo, VIH, tuberculose e malária. A tragédia é que estas doenças são tratáveis: a maioria destas mortes poderiam ser evitadas com acesso atempado a medicamentos apropriados e acessíveis em termos de preço. 


A capacidade africana de investigação e desenvolvimento (I&D) farmacêutico e de produção local de medicamentos está entre as mais baixas do mundo. No total, 37 países africanos têm alguma produção farmacêutica, embora apenas a África do Sul produza alguns ingredientes farmacêuticos ativos. Onde há produção local em África, normalmente há uma dependência de ingredientes ativos importados. Como resultado, o fornecimento de produtos farmacêuticos africanos permanece altamente dependente do financiamento estrangeiro e das importações. A produção de equipamento e consumíveis de saúde segue um padrão semelhante. 


A COVID-19 demonstrou uma capacidade anteriormente oculta para produzir máscaras, testes e outros produtos essenciais em toda a África. Esta capacidade deve ser cultivada. Este é o início de uma mudança no sentido de uma maior confiança na capacidade de produção de produtos de saúde em África, juntamente com investimentos em I&D. 


Em quarto lugar, a África deve preparar-se para o impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho e dos sistemas de produção. Depois de serem elogiados pela sua liderança nas transações bancárias móveis, os africanos devem abraçar objetivos mais ambiciosos. Em vez de interpretarem os avanços tecnológicos como ameaças, os africanos podem emular a experiência bancária móvel para ultrapassar as deficiências ao nível das infraestruturas, bem como eliminar processos burocráticos ultrapassados que estão a dificultar o empreendedorismo e a formalização da economia. Sem formas mais modernas de transação económica, não será possível aumentar significativamente a pressão fiscal no continente – atualmente com uma média de 17% do PIB, contra uma média mundial de 35%. Esta baixa pressão reduz o espaço fiscal e torna evidentes várias formas de dependência externa. 


Felizmente, alguns dos melhores reformadores do Índice de Facilidade de Fazer Negócios do Banco Mundial (Ease of Doing Business Index) são africanos. O mesmo ímpeto é necessário para a inovação. A industrialização e transformação de serviços em África depende muito da capacidade do continente para explorar a sua posição como o maior reservatório de nativos digitais. Com a população mais jovem do mundo, é em África que as novas tecnologias têm o maior potencial de adaptação, desde que os jovens não se limitem a ser consumidores passivos de conteúdos e sistemas, mas sim participantes também. A COVID-19 tem contribuído para a descoberta deste potencial. Com 53 dos 54 países a encerrar o seu sistema escolar, os países lutaram para não perder um ano escolar inteiro. A utilização de plataformas digitais pode ser acelerada para fins educativos. O mesmo é válido para os serviços. As formas de trabalho remoto tornaram-se cada vez mais populares e socialmente aceites. Esta é uma oportunidade para acelerar a transformação e dar o salto. 


Em quinto lugar, as regras de estabilidade macroeconómica continuam a ser desafiadas em todo o mundo. Com a recessão ou depressão, os sinais de angústia tornam-se mais fortes, a ortodoxia monetarista de Milton Friedman está a evaporar-se rapidamente. O Estado está de volta, para salvar a maior perturbação dos mercados desde a Grande Depressão. Contudo, a pequena margem de manobra resultante da instabilidade que prevalece desde a crise do subprime de 2008-09 não permite recorrer às receitas habituais. Enormes pacotes de estímulos, rácios da dívida em relação ao PIB muito acima dos 100%, taxas de juro profundamente negativas ou défices fiscais monetizados tornaram-se políticas públicas aceitáveis. A teoria económica neoclássica está virada do avesso. 


Com a estagflação ou deflação a substituir as preocupações com a inflação, o acesso à máquina de impressão é o novo normal para aqueles que podem. Com a atual forma como a dívida é classificada e a forma como o seu quadro de sustentabilidade é aplicado, os países africanos nunca poderão sair do impacto duradouro da COVID-19. A maioria das reformas feitas nas últimas duas décadas no continente, e que produziram um desempenho de crescimento excecional para cerca de metade dos países, estão seriamente comprometidas. Os pedidos de perdão da dívida – ou uma moratória mais tímida do serviço da dívida – são gotas no oceano. Algo muito mais ambicioso e radical deve ser pensado. Esta crise permite-nos pensar em grande, e oferece à África uma oportunidade de agir e embarcar num processo de transformação estrutural mais robusto. Com base nos ganhos dos últimos anos e na resiliência da sua população, não haverá provavelmente melhor altura para uma mudança acelerada. 


Este texto é uma tradução de um artigo originalmente publicado no Africa is a Country.

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