COVID-19Saúde Global

Na segunda sessão do Ciclo de Conversas sobre a Covid-19 e o futuro da governação global, promovido pela Oficina Global durante os meses de Abril e Maio de 2020, Vinicius Tavares, professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e Manuela Silva, psiquiatra no Hospital de Santa Maria e no Lisbon Institute for Global Mental Health, trouxeram interessantes reflexões que permeiam o tema da necropolítica e as questões de saúde pública global. Pode ouvir esta e as outras conversas deste ciclo em versão podcast, aqui.  


Logo no começo de sua fala, Manuela Silva, nos instiga a pensar sobre as desigualdades existentes na saúde, chamando a atenção para o fato de que uma das primeiras reações quando se percebeu o alto contágio do novo coronavírus foi dizer que esse era um vírus democrático, com igual potencial para infetar qualquer indivíduo sem distinção de classe, cor ou sexo. A questão é: será mesmo que podemos considerar a Covid-19 democrática? 


A resposta, dada pela psiquiatra, é não. A verdade é que as consequências da Covid-19 são assimétricas e para além de agravar as desigualdades de saúde evidencia a existência de injustiças compostas – pessoas já marginalizadas sofrem mais com a pandemia. Manuela Silva destaca ainda que as condições em que as pessoas nascem, vivem e trabalham são aspetos fundamentais na produção da saúde e da doença e que o coronavírus provoca resultados discrepantes na sociedade, agravando as desigualdades já existentes. 


Isso nos leva a necessidade de refletir sobre os determinantes sociais da saúde. A posição socioeconômica interfere no potencial de ser infetado porque faz com que as pessoas estejam expostas de forma desigual ao vírus. Um exemplo disso é que o isolamento social, uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para diminuir o contágio, não pode ser praticado por todos. Na maioria das vezes são os postos de trabalho menos intelectualizados e com menores rendimentos que não possuem a possibilidade de teletrabalho. Outro fator que impossibilita o distanciamento social é precisar trabalhar por depender do rendimento mensal para suprir necessidades básicas. Embora governos de alguns países tenham adotado algum tipo de benefício emergencial para a população mais vulnerável, essa ajuda não está disponível para todos. 


A piorar a situação está o fato de que essa parcela da população, além de estar mais exposta ao vírus, tem menos acesso a saúde, principalmente em países que não têm um sistema de saúde público. Mais ainda, nos próximos meses vão ser sentidos os impactos econômicos da pandemia e a crise outra vez terá um peso maior sobre esses indivíduos marginalizados, intensificando as desigualdades sociais já existentes – o que já foi observado em crises anteriores, como ponderou Manuela. 


Em consonância com a fala da psiquiatra, Vinicius Tavares complementa a discussão trazendo o conceito de necropolítica, na qual a decisão sobre a vida e a morte perpassa por aspectos políticos. O professor nos coloca a pergunta: “como chegamos ao ponto de dizer que há uma escolha entre quem vive e quem morre?”. E, em seguida, afirma que para responder é preciso compreender o contexto de desigualdades estruturais que está presente tanto em países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Os indivíduos socialmente excluídos que vivem em condições precárias são a maioria que vai morrer e que sofrerá com mais intensidade os impactos econômicos decorrentes da pandemia.  


Para exemplificar, Vinicius menciona alguns números referentes às mortes por Covid-19 em dois bairros da cidade de São Paulo, no Brasil. No Morumbi, um bairro rico, na semana em que ocorreu essa conversa, eram 297 os infetados pelo coronavírus e 7 mortes, enquanto que na Brasilândia, um bairro periférico, haviam89 casos confirmados e 54 mortes. Esse exemplo é uma evidência da necropolítica, demonstra como a pandemia expõe problemas sociais de longa data e enfatiza como as injustiças aparecem na sociedade de forma composta, isto é, o estrato da população já marginalizado assumindo os efeitos mais graves da Covid-19. 


Um último aspeto abordado na conversa foi o impacto da pandemia sobre a saúde pública global. O momento demanda uma cooperação entre os países, mas o que vemos são comportamentos nacionalistas como, por exemplo, as ameaças de retirada de financiamentos da OMS e o confisco de respiradores realizado por alguns governos. Isso dificulta uma resposta global à pandemia e é, também, uma dimensão da necropolítica. Vinicius ainda acrescenta que o uso da linguagem da guerra por parte de alguns tomadores de decisão – afirmando que a humanidade estaria em uma guerra contra o vírus – cria uma narrativa que legitima ações nacionalistas e compromete soluções a nível global.  


As ponderações de Manuela e Vinicius nos geram questionamentos incômodos acerca do que podemos fazer diante de realidades tão distintas. O fato é que, seja dentro ou entre os países, a pandemia expôs de forma acentuada o quão desigual é o mundo em que vivemos. Temos diante de nós um cenário de incertezas em que todos sofremos, mas uns mais que os outros. Se estivermos realmente comprometidos a construir um futuro mais justo e inclusivo é preciso reconhecer que essas desigualdades são estruturais e soluções efetivas para as consequências da pandemia devem considerar formas de combatê-las.   


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