Créditos da imagem: Arquivos Africanos, Bruxelas (fotografia tirada por Stephanie Perazzone, 2016).
Os arquivos coloniais guardam a violência do passado, mas também transportam o potencial para futuros anticoloniais – se forem radicalmente reimaginados em prol da justiça e da acessibilidade.
Um retrato do Rei Leopoldo II dá as boas-vindas aos visitantes que entram na sala de leitura do Arquivo de África, em Bruxelas (Fig. 1). Não há nenhuma nota a explicar que era o proprietário privado do Estado Livre do Congo e o responsável pela violência generalizada perpetrada contra o povo congolês. Não há qualquer aviso para informar o visitante sobre a razão pela qual o antigo estado colonial ainda controla e gere o arquivo. De facto, o visitante tem a impressão de uma instituição organizada e tranquila. Ao entrar na sala de leitura, respira-se o passado: os velhos livros de registo, as pilhas de papéis quebradiços e a grandiosidade do edifício transmitem uma sensação de ordem racionalizada.
No entanto, um exame mais atento do texto e da imagem arquivados, e do próprio arquivo, rapidamente dissipa a ilusão de ordem. Olhando para além dos procedimentos formais, da imponência imperial e das escrituras elegantes, a desordem e o nervosismo começam a aparecer. Primeiro, a instituição: o sistema é ilegível para o visitante, o acesso aos documentos é demorado e dispendioso, não existe uma base de dados digital funcional, as caixas perdem-se frequentemente e as pastas estão cheias de manchas e páginas rasgadas. Armazenados longe das pessoas que viviam no Congo, os registos arquivísticos são em grande parte inacessíveis e sujeitos à gestão do antigo Estado colonial. Em segundo lugar, o nervosismo é evidente no próprio domínio colonial: os registos documentam obsessivamente as tarefas rotineiras dos agentes coloniais e enumeram, em colunas ordenadas, os lucros e as perdas de uma economia exploradora, as mortes e apropriações de terras, e o número de cestos de borracha recolhidos através de trabalho forçado (Fig. 2, lado esquerdo). Os documentos exibem títulos formais e autoridade imperial, mas a caligrafia delicada e caligráfica narra a história de uma rapariga de 15 anos, Matuli, cuja mãe foi decapitada por sentinelas (Fig. 2, lado direito). Enquanto local pluralista de conhecimento, as ambivalências do arquivo perpassam tanto o funcionamento do domínio colonial como o arquivo, admitindo, assim, as suas “próprias confusões e contradições” e mostrando as ansiedades de uma história colonial que se recusa a ser domada.

No Arquivo de África, encontrámos um regime colonial que estava enraizado na ideia de progresso material e disciplina corporal, mas que, sob o disfarce da razão burocrática e da civilização, exibia as características de um “estado nervoso e agitado”. A paradoxal ordem e desordem do arquivo refletem a política subjacente do império, ansiosa e movida pelo pânico, que se centra especificamente nos corpos, no género e nas sexualidades.

Isto é visível nas práticas de registo dos agentes ocidentais quando relatam as violações e os abusos sexuais generalizados contra as mulheres congolesas no Estado Livre do Congo. A Associação Britânica de Reforma do Congo (CRA), que empreendeu uma campanha contra o governo do Rei Leopoldo, tornou explicitamente a violação perpetrada pelos colonizadores “impublicável” e, portanto, indizível (Fig. 3). E.D. Morel, que liderou o inquérito, apagou os testemunhos e as vozes das mulheres congolesas para proteger o trabalho da CRA e dos seus leitores liberais. Paradoxalmente, esta desfiguração histórica e (re)produção violenta de mulheres como sempre violadas ou silenciadas é reativada no momento atual: o olhar masculino branco do arquivo persiste no contínuo apagamento das experiências das mulheres negras e na “impossibilidade de falar” do abuso sexual.

Policiando compulsivamente as fronteiras morais, sexuais e raciais, um regime colonial paranoico tentou manter a ilusão de um Estado que faz avançar a razão e o melhoramento (respeitável), quando, na realidade, exibia caraterísticas altamente mistificadas, personificadas e privatizadas que ainda se encontram, embora sob diferentes formas, na governação atual do Congo.
A figura do agente colonial masculino branco, exercendo uma masculinidade “respeitável” na vida familiar e nos assuntos do Estado, era central no empreendimento colonial. Por exemplo, a criação de uma classe elitista de évolués – congoleses “evoluídos” -, cujo estilo de vida e estrutura familiar giravam em torno dos chefes de família do sexo masculino, destinava-se a apoiar a “missão civilizadora” belga (Fig. 4). Embora esta política tivesse como objetivo legitimar o domínio colonial, gerou mais ansiedades políticas à medida que se tornou óbvio que um número crescente de congoleses instruídos exigia direitos iguais. Um informador entrevistado em Kinshasa em 2015 recordou:
Esperava-se que os évolués imitassem o estilo de vida europeu. Os agentes estatais brancos iam às suas casas sem aviso prévio para verificar se estavam vestidos adequadamente, se os seus filhos iam à escola, se as suas cozinhas estavam limpas e se as suas casas estavam arrumadas. As suas casas tinham de se parecer com as belgas. Mas também tiveram de cortar laços com os seus familiares e amigos que permaneceram na aldeia. Já não era possível ver os nossos sobrinhos, tios, tias, avós, primos… Ficaram esquizofrénicos. … Houve uma separação dentro dos próprios negros.
Os arquivos são, portanto, o eco escrito da política “esquizofrénica” do projeto colonial, que produziu profundas fracturas sociais e transformou a vida quotidiana numa realidade distópica para o povo congolês. A raça e o género tornaram-se o tropo social organizador, e o colonialismo tomou forma em torno da domesticidade e da ideia de casa. Por detrás de uma fachada de tranquilidade, o Estado colonial belga sofria de ansiedades políticas, sexuais e raciais generalizadas, que produziam um tipo de violência lenta que se estendeu muito para além do domínio colonial formal e molda fortemente a política atual no Congo. Estas ansiedades coloniais apontam para a lógica global da colonialidade e incitam-nos a questionar as perspectivas evolucionistas que vêem as formações políticas em África, e no Congo em particular, como inerentemente violentas devido à sua suposta incapacidade de replicar o Estado ocidental/liberal. Curiosamente, porém, o arquivo colonial também “contém em si os recursos da sua própria refutação”, disse um dia Mbembe. É nestes momentos em que as mulheres ou os homens congoleses se representam a si próprios que o arquivo tem um enorme potencial. Os relatos em primeira mão que temos, embora raros, são momentos “instantâneos” da humanidade que obliteram todas as formas de objetividade, e é a eles que devemos recorrer para recuperar histórias silenciadas e resistir às duradouras narrativas racializadas sobre o “estado pós-colonial” e a violência sexual.

O retrato do Rei à entrada da sala de leitura do arquivo faz dele o guardião dos arquivos, o que ilustra uma ordem racializada e excludente: o arquivo é o terreno privilegiado da branquitude e continua a ser gerido e controlado pelo antigo Estado colonial.
O nosso trabalho demonstra que grande parte da violência que os cidadãos congoleses vivem hoje em dia está profundamente enredada numa longa história de desapropriação arquivística, intelectual e material. Mas também mostra que são possíveis leituras diferentes e anticoloniais do arquivo. Lila Abu-Lughod pergunta como devem ser os arquivos para pessoas sem Estado, cujos conhecimentos e memórias estão a ser aniquilados e que vivem sob uma ocupação colonial brutal, para construir uma espécie de arquivos do povo? Aceitámos o seu apelo para pensar profundamente sobre as “condições de arquivo e prestar atenção às formas como os arquivos são e podem ser utilizados”. O envolvimento crítico com o arquivo não significa apenas questionar o seu poder e produção de conhecimento, mas também ter em conta e utilizar o seu potencial emancipatório, precisamente porque contém possibilidades de se desfazer a si próprio. Já contém “o arquivo que ainda está por vir”. De facto, nos últimos anos, devido aos esforços coletivos de historiadores, arquivistas e investigadores, muito trabalho tem sido feito para descolonizar e desclassificar os arquivos. Os Arquivos de África estão atualmente a ser transferidos para os arquivos do Estado, o que os tornará mais acessíveis. Mas o nosso momento atual exige mais do que isso – exige uma mudança radical e uma promessa de justiça. E se os visitantes dos arquivos coloniais fossem recebidos com fotografias que exibissem criticamente os rostos dos colonizadores? E se o arquivo fosse especialmente concebido para responder às necessidades e desejos da diáspora e das comunidades congolesas — retirado das suas paredes protegidas e mobilizado como um dispositivo crítico para (re)pensar e conhecer a violência? Poderá este ser o início de um arquivo vivo e anticolonial?
Este artigo foi publicado originalmente no blogue Africa is a Country. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é de responsabilidade da Oficina Global.