Créditos da imagem: AMISOM Public Information via Flickr.
É tentador, mas insatisfatório, culpar a pobreza e a fraca regulação pelo despejo de veículos usados em África.
Muitos países ricos tornaram o processo de troca de combustíveis fósseis para veículos elétricos (VE) uma estratégia-chave para a descarbonização dos seus setores de transporte para enfrentar as alterações climáticas. Nos EUA, o governo Biden anunciou planos para tornar elética toda a frota federal e pretende que os VE sejam 50% de todas as vendas de carros novos até 2030. O governo também atribuiu milhares de milhões de dólares em créditos fiscais para estimular o mercado de veículos elétricos. Quase todos os Estados-Membros da UE têm formas semelhantes de apoio fiscal.
Ao mesmo tempo que os países ricos estão a exigir e a subsidiar carros mais limpos e eficientes internamente, continuam a enviar veículos a gasóleo/diesel e a gasolina em números cada vez mais elevados para países de baixo rendimento em todo o mundo. Os EUA, por exemplo, exportaram 8 mil milhões/bilhões de dólares em veículos de passageiros usados em 2021, valor acima dos cerca de 6 mil milhões/bilhões de dólares em 2017.
Os veículos usados ganham uma segunda vida como uma opção de transporte acessível em África. Também criam meios de subsistência para milhões de pessoas, incluindo mecânicos, pintores e outros técnicos de automóveis. O problema, no entanto, é que muitos dos veículos são altamente poluentes e tendem a ser inseguros para conduzir. A prática de remover os seus catalisadores e outras modificações para retirar metais preciosos torna-os ainda mais poluentes. No final, a simples transferência de veículos antigos para outros países prejudica os objetivos globais e locais de avançar para um transporte seguro e com baixas emissões.
A utilização contínua de África e de outras regiões de baixo rendimento do mundo como local de despejo de veículos obsoletos, inseguros, sujos e, muitas vezes, defeituosos pelos países ricos, é frequentemente atribuída à pobreza, aos baixos rendimentos, à dificuldade de acesso aos empréstimos para compra de automóveis e à fraca regulamentação. A sugestão aqui é que, embora os consumidores de veículos possam não preferir inerentemente veículos usados a novos a preços semelhantes, são frequentemente limitados pelo rendimento e os veículos usados são significativamente mais baratos. O financiamento de automóveis também é incomportável para a maioria, limitando o acesso a essa possibilidade de compra de veículos a algumas pessoas de alto rendimento. Estes fatores tornam os veículos novos inacessíveis para a maioria.
Entretanto, as normas de proteção ambientais e de saúde pública contra os danos causados por veículos usados são muitas vezes baixas e mal aplicadas. O custo da reparação de veículos antigos também é relativamente baixo. Em conjunto, estes fatores aumentam a procura por veículos usados, que muitas vezes estão disponíveis devido à procura de carros novos e a políticas rigorosas de reciclagem nos países mais ricos.
O nosso trabalho sobre Gana como um estudo de caso sugere, no entanto, que esta explicação de regulação fraca nos diz apenas sobre a dependência dos veículos usados. Tende também a limitar os instrumentos políticos a proibições e restrições de importação frequentemente ineficazes. Uma visão mais holística revela que há mais em jogo e abre mais opções de políticas.
Gana reviu algumas das leis de planeamento que herdou da sua experiência colonial. No entanto, tal como acontece em outros países africanos, as atitudes e práticas dos políticos e profissionais ganeses relativamente ao planeamento, aos transportes e ao uso da terra ainda refletem quadros e mentalidades coloniais. Estas práticas continuam a promover a separação espacial do trabalho e outras atividades longe de casa, obrigando as pessoas a viajar mais.
Como em grande parte da África, um grande número de pessoas no Gana satisfazem as suas necessidades de viagem através da caminhada. No entanto, para distâncias mais longas, contam com os populares miniautocarros/microônibus (chamados “tro-tro“), táxis tradicionais e, nos últimos tempos, boleias/caronas e “Okada” (motos) também têm vindo a ser utilizados. Embora sejam populares no sentido de que são amplamente utilizados, estes modos de transporte privados permanecem marginais em termos de apoio público e investimento.
O Governo do Gana e os seus “parceiros de desenvolvimento” direcionam os seus investimentos em autocarros/ônibus de alta qualidade para projetos de transporte rápido de autocarros (BRT), que nem sempre funcionam como planeado, deixando lacunas. Além disso, a construção estradas, que induz uma maior dispersão da utilização dos terrenos e, por conseguinte, incentiva mais viagens, é muitas vezes prioritária em relação à oferta de transportes públicos. As estradas são concebidas principalmente para automóveis e, portanto, muitas vezes carecem de caminhos pedonais, cruzamentos e ciclovias.
Esta prática de canalizar recursos públicos – ruas/estradas, finanças, leis de planeamento e sistemas de uso da terra – para obrigar ou incentivar mais viagens sem um investimento proporcional na oferta de transportes públicos cria espaço para indivíduos de rendimento mais elevado importarem veículos para uso pessoal e comercial.
Como acontece em todo o mundo, a propriedade de veículos no Gana carrega um prestígio simbólico. Isto, juntamente com o desconforto, as ineficiências e outros problemas no sector dos tro-tro ou miniautocarros, contribui ainda mais para a cultura do consumo de veículos particulares. A demanda é facilmente atendida pelos importadores de veículos usados mais baratos cuja oferta é abundante. A corrupção bem documentada nos serviços aduaneiros também prejudica a aplicação efetiva das regulamentações relativas à importação de veículos usados.
Atualmente, o foco na fraca regulação e na pobreza leva à imposição de proibições e sanções às importações de veículos usados como principal resposta política à dependência dos veículos usados em África. A experiência ganesa sugere, no entanto, que uma visão mais ampla que considere padrões de utilização do território e dinâmicas de subinvestimento relativamente aos sistemas de transporte público e popular poderia facilitar novas opções de políticas potencialmente mais bem sucedidas.
Estas incluem a reorganização do planeamento urbano para incentivar o uso misto do espaço físio e o desenvolvimento orientado para o trânsito favorável aos peões/pedestres. Desta forma, as pessoas podem viver, trabalhar e fazer compras na mesma área, para que viajem menos. Tornar os transportes públicos, bem como a caminhada e a bicicleta, mais limpos, seguros, eficientes e atraentes, pode também ser uma grande estratégia para reduzir o uso de veículos particulares e o consumo geral de veículos.
As estratégias específicas a ter em conta incluem investimentos mais fortes em infraestruturas de transportes públicos e não motorizados, tais como faixas exclusivas para autocarros e paragens de autocarros adequadas, estações e informações aos passageiros, bem como a concessão de benefícios fiscais e apoio financeiro a veículos novos utilizados para fins de transporte público. Os programas de recapitalização do miniautocarros, como ocorre na África do Sul, podem ser uma ótima maneira de introduzir maior utilização, baixas emissões e veículos mais seguros. A transição para miniautocarros elétricos, incluindo o investimento em iniciativas locais de transição para veículos elétricos no continente, será uma ótima opção para explorar. Trata-se também de uma questão de justiça social, dado que a maioria e as pessoas de baixos rendimentos utilizam estas formas de mobilidade partilhada.
No geral, é necessário uma mudança de política, afastando das proibições de importação de veículos usados e da construção de estradas cada vez mais caras que ajudam a impulsionar esta demanda. Em vez disso, uma visão mais holística da dependência dos veículos usados sugeriria um conjunto mais alargado de intervenções mais amplas para reduzir a dependência da mobilidade centrado no automóvel e, com isso, o consumo de veículos e todos os danos socio-ambientais que traz.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Africa is a Country. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.