Pobreza

Créditos da imagem: Dani Vázquez via Flickr.


Três questões-chave para compreender mudanças na pobreza global


Em 2010 e nos anos seguintes, foi dada mais atenção ao facto que muita da pobreza global se tinha mudado para países de rendimento médio (por exemplo aqui, aqui e aqui). Obviamente, que os mais pobres do mundo não se mudaram, mas os países que acolhem um grande número de pessoas pobres melhoraram em média e a pobreza não caiu tanto como seria expectável com o crescimento económico e a passagem de países de rendimento baixo para médio. Também havia algumas questões importantes na categorização dos países. É possível dizer que os mais pobres do mundo não vivem nos países mais pobres, mas sim em países com um rápido crescimento e em países com recursos domésticos para responder à pobreza, embora restringidos por políticas económicas domésticas (quem não quer combustível barato?)


Esta ideia de distribuição da pobreza global tem, recentemente, sido revisitada, assim como parece que a pobreza global voltou para países de rendimento baixo (PRB). Será? Para compreender melhor o panorama das tendências da pobreza global, localizações e para compreender as implicações da pandemia do COVID-19, precisamos de entender as limitações dos dados.


O que é que os dados não nos podem dizer?


Nós estamos a enfrentar um grande e monumental desafio no que toca a dados. Em primeiro lugar, não existem dados reais para a pobreza na Índia ao longo da última década – um país com um impacto substancial na contagem da pobreza global devido à sua grande população. Em vez disso, a base de dados PovcalNet do Banco Mundial extrapolou o consumo dos agregados familiares para calcular a pobreza na Índia entre 2011 e 2017 (não 2019, embora não seja claro porquê). Extrapolação não é único ao caso indiano; o Banco Mundial também infere estimativas de pobreza de outros países se dados para o ano de referência não estiverem disponíveis. E aqui está a questão. Isto traz consigo um problema monumental. O Banco Mundial tem mais de seis mil distribuições na sua base de dados, mas apenas um terço – cerca de dois mil – são dados reais de inquéritos, logo a interpolação/extrapolação é endémica (ver Figura 1).


Todas as figuras nesta publicação são baseadas na base de dados PovcalNet do Banco Mundial (uma diferença: nós usamos a estimativa de pobreza da Índia do Banco Mundial de 2017 e aplicamos em 2019). Por isso, tudo aqui é baseado na base de dados “oficial” usada pelo Banco que, a seu crédito, disponibilizam publicamente.


Podemos dizer objetivamente quantas pessoas vivem em pobreza?


O Banco Mundial usa a linha do $1.90-por-dia cuja determinação depende muito de duas décadas de dados do Índice de Preços no Consumidor (Consumer Price Index, CPI) de alguns dos países mais pobres do mundo. Isto acaba por ser controverso, uma vez que erros poderiam alterar o valor total da linha da pobreza e alterar a contagem da pobreza. A cada cêntimo acima da linha estabelecida pelo Banco Mundial acrescenta, em média, quase 70 milhões de pessoas pobres. Assim, a contagem da pobreza global a $1,90 por dia – quase 700 milhões de pessoas – acrescenta mais 500 milhões de pessoas quando se chega a $2,50 por dia, que é a linha média de pobreza de todos os países em desenvolvimento (ver Figura 2). Para além disso, o número de pessoas aumenta em mil milhões com a passagem do $1.90 para linha da pobreza “moderada” do Banco Mundial de $3.20-por-dia. Este limiar dos $3.20 é importante já que também é a linha da pobreza intimamente associada ao número de pessoas na pobreza multidimensional e à linha média da pobreza entre os países de rendimento médio-baixo(PRMB), onde vive a maioria dos pobres multidimensionais do mundo.


Na Figura 2 também incluímos $5.50, a linha da pobreza média dos países de rendimento médio-alto (PRMA), e $13 por dia, já que esta é a linha associada à fuga “permanente” da pobreza utilizada pelo Banco Mundial na América Latina.


Onde vivem os pobres do mundo? Dica: Depende de quem é que nós qualificamos como pobres


Principalmente em África e, em contraste com uma década atrás, em países de baixos rendimentos, certo? Bem, mais uma vez, depende onde estabelecemos a linha. À volta do rendimento/consumo a linha da pobreza está relacionada com a conta multidimensional da pobreza ($3.20 por dia), os mais precários vivem tanto no sul da Ásia como na África Subsaariana (ver figura 3). Ao mesmo tempo, se nós utilizarmos a linha da pobreza moderada do Banco Mundial de $3.20, três quartos dos pobres do mundo permanecem nos PRM (Figura 4).


Depois ainda há a pandemia. Nós nunca saberemos de certeza o impacto da pandemia na pobreza, pois precisaríamos de inquéritos para um grande número de países em desenvolvimento, tanto antes como depois e esse tipo de inquérito não existe. Além disso, a pandemia ainda está em curso e poderá moldar as perspetivas para o crescimento e a redução da pobreza em países em desenvolvimento durante os próximos cinco a dez anos, tendo em conta a lenta e desigual distribuição global de vacinas.


A Figura 5 demonstra vários cenários sobre o quanto a contagem da pobreza em países de rendimento médio poderia ter aumentado devido à pandemia. O nosso objetivo não é tentar prever precisamente a pobreza, mas mostrar o que os diferentes choques de rendimento para os que estão próximos do limiar da pobreza implicam em termos de impacto potencial na pobreza na ausência de intervenção política compensatória. Assim, usamos um conjunto de choques universais e arbitrários para estimar a extensão da precariedade.


Em suma, nós estamos a realçar a fragilidade do progresso na redução da pobreza dentro do atual contexto pandêmico, tendo em conta as características das respostas à pandemia – por exemplo, confinamentos – juntando isto às condições pré-existentes de elevados níveis de informalidade de emprego e a cobertura mais fraca da proteção social no setor informal.


O nosso estudo ilustra o seguinte: se o choque de rendimentos for desta magnitude, o efeito na pobreza poderá ser dramático. O que é evidente é que milhões de pessoas em PRM não vivem muito acima da linha da pobreza do $1.90-por-dia (e da linha da pobreza dos $3.20) e, portanto, poderá facilmente cair (novamente) na pobreza, devido a interrupção da atividade económica devido ao confinamento ou doença.


Porquê que isto é importante? Existem três razões


Primeiramente, de forma chocante, nós não sabemos realmente quanta pobreza de rendimentos existe no mundo devido à falta de dados da Índia. É claro que nós temos estimativas multidimensionais da pobreza (a nível global a contagem de pessoas poderia ser o dobro da linha da pobreza de $1.90 por dia).


Em segundo lugar, porque os dados nos dizem que a pobreza extrema, ou seja, $1.90 por dia, voltou aos PRB (pelos menos antes da pandemia), grande parte da pobreza global permanece nos PRM. Aliás, três quartos dos pobres do mundo, na linha dos $3.20, estão a viver em PRM, mesmo se medidos antes da pandemia.


Em terceiro lugar, a pandemia fez com que milhões de pessoas nos PRM, que vivem ligeiramente acima da linha da pobreza de $1.90 por dia, estejam em riscode regredir, o que significa que a contagem da pobreza global poderá aumentar e o crescimento económico interrompido nos próximos anos pode deixar os níveis de pobreza mais elevados.


O que a pandemia deixou bem evidente foi que cada país precisará de um programa de vacinação universal (provavelmente anual). Contudo, o Sul Global – com algumas excepções, nomeadamente a Índia e a China como produtores de vacina – é improvável que tenha acesso justo e igualitário ao fornecimento global de vacinas para alcançar uma cobertura universal.


Consequentemente, o crescimento económico e a redução da pobreza irão provavelmente prosseguir em alternância à medida que as ondas de infecção atingem o seu pico e o seu fim. Até mesmo as vacinas que cheguem ao Sul Global necessitarão de ser pagas e requerem uma capacidade estatal para a sua distribuição. Isto poderá significar o desvio da despesa pública e dos esforços do Estado para longe das despesas sociais e da redução da pobreza. O impacto imediato da pandemia levou a uma expansão de apoios sociais, que precisam se tornar permanentes e universais nos anos que se seguem, de modo a colmatar mais do que a primeira fase de impacto da pandemia, para que a pobreza possa ser reduzida e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sejam alcançados. 


Este artigo foi publicado originalmente pelo blogue UNU-WIDER. Leia o artigo em inglês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global.

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