Descolonizar o DesenvolvimentoRacismo

Este artigo foi originalmente publicado no blogue de Fernanda Vilar, onde a autora faz publicações periodicamente. Este texto, que também pode ser lido aqui, foi escrito no quadro do projeto ERC-MEMOIRS e publicado em 5 de junho de 2021. Créditos da imagem em destaque: “Take a Knee”, de Elsa Martino via The Greats CC BY-NC-SA 4.0.



“Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje”. Ditado Iorubá


O filme-manifesto “AmarElo — É Tudo Pra Ontem1” (2020) de Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como rapper Emicida começa e termina com o ditado iorubá sobre Exu, um orixá capaz de matar um pássaro ontem com uma pedra arremessada hoje. Exu é conhecido como elemento transicional, o último orixá e o primeiro humano, aquele que possibilita a comunicação entre o céu e a terra2. No imaginário cristão brasileiro, Exu é interpretado como sendo o demônio. Entretanto, na narrativa alternativa à história oficial do Brasil, Exu reinventa a memória ao reescrever a história do Brasil pela perspectiva dos negros. No filme são denunciados os danos da escravidão e da abolição sem indenização, assim como a política de branqueamento, responsáveis por perpetuar um abismo racial na população brasileira.


Emicida traz para o Teatro Municipal de São Paulo, palco da quase centenária e aristocrata Semana de Arte Moderna de 1922, atores de um Brasil em transformação. Pessoas herdeiras de um passado que Exu resgata. São resgatados aqueles que habitam as quebradas (periferias urbanas) e encontram na arte da rua, no rap e nas batalhas de poesia o lugar de fala e de mobilização. São pessoas que lutam para terem seus direitos assegurados em leis, como a comunidade LGBTQI+, mulheres, pessoas racializadas como não-brancas, enfim, pessoas que carregam as interseccionalidades do cidadão vulnerável.


Para entender o atual debate racial brasileiro, vale a pena retomar o recente movimento #BLM e analisar sua relação com o efeito Dunning-Kruger, um “fenômeno que leva indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto a acreditarem saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos –incapacitando-os de reconhecer os próprios erros”3. Ao invés de dizer pela hashtag #BLM “os policiais devem sofrer as consequências de seus atos”, o #BLM deu às pessoas a magnitude do problema da violência da polícia contra a população negra em diversos países do mundo. Dessa maneira, vários grupos de pessoas que não sofrem dessa forma de violência tiveram uma dimensão de quantas vidas negras são perdidas pelo uso da força desproporcional da polícia quando interpelam um corpo negro. Exu transita entre aquilo que não quisemos ver por tanto tempo e que já não há mais como calar. Exu é #BLM.

No imaginário cristão brasileiro, Exu é interpretado como sendo o demônio. Entretanto, na narrativa alternativa à história oficial do Brasil, Exu reinventa a memória ao reescrever a história do Brasil pela perspectiva dos negros.


Ainda hoje as denúncias de sexismo ou racismo no Brasil podem ser lidas como “mimimi” nos debates alvoroçados da internet. “Mimimi” é na linguagem popular sinônimo de reclamação desnecessária. Da internet vem a contrapartida desses discursos com a linguagem singular dos memes4, que explicam: “ mimimi é quando dói na pele do outro e não na sua”. Os anos de políticas públicas de ações afirmativas e redistribuição de renda permitiram que as classes oprimidas pensassem seu lugar na sociedade e os problemas estruturais que afetam sua existência. Entretanto, ao perceberem os problemas da sociedade, essa percepção tornou-se o problema5 e os privilegiados viram nessa libertação uma ameaça, gritando a todo clamor de justiça: “Sai Exu!”


As produções culturais, acadêmicas, associativas e mediáticas dos últimos anos no Brasil não permitem mais fazer de conta que não sabíamos. Dia 29 de março de 2021 publicou-se a Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras, livro de Flávio Gomes, Lilia Schwarcz e Jaime Lauriano, onde os intelectuais escrevem e reescrevem a trajetória de 550 personagens que marcaram o país. Nela personalidades negras conhecidas ou pouco conhecidas ganham referências de suas obras e ações, algumas ganham retratos imaginários, criando um espaço de existência dentro da narrativa mais ampla da história do Brasil. Exu ilustra e inspira.


Outro livro que vem celebrar um feito literário no Brasil, a autora Carolina Maria de Jesus, que escreveu o célebre livro “Quarto de despejo” (1960), é a coletânea organizada por Julio Ludemir “Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras” (2021), onde 180 escritoras negras escreveram textos a partir de encontros on-line promovidos ao longo de 2020 pela Festa Literária das Periferias (Flup). É Exu fabricando narrativas.


No cenário literário, temos ainda a obra galardoada Torto Arado (2019), do escritor Itamar Vieira Junior que, apesar de ter recebido uma recepção positiva quase que unanime da crítica e do público, foi alvo do difícil trabalho de crítica divergente da jornalista Fabiana Moraes , que escreveu em um Tweet: “Torto Arado é um bom livro, mas: boa parte do entusiasmo vem do mercado editorial sublinhando obra que apazigua a má consciência branca (lembrando aqui Allan da Rosa/Baldwin). Excesso de didatismo incomoda. Às vezes parece aula pra pele clara entender” — ao que o autor responde com uma reflexão sobre racismo, literatura e a recente projeção de autoras e autores negros no mercado brasileiro. Exu provoca diálogos e debates.


Em 2020, foi lançado o documentário “Dentro da minha pele”, de Toni Venturi e Val Gomes, cuja premissa é revelar “o racismo estrutural que está impregnado nas relações familiares, nos ambientes de trabalho e faz parte da subjetividade das pessoas negras e brancas”6. Para isso pensadores, músicos, cantoras, instrumentistas e poetas slammers deram depoimentos para mostrar a dimensão e o impacto do racismo em suas vidas. A didática do filme, acompanhado pelos relatos, é um importante documento da situação do Brasil e das consequências de não termos resolvido o ontem. Exu resolvendo os tempos.



As produções culturais, acadêmicas, associativas e mediáticas dos últimos anos no Brasil não permitem mais fazer de conta que não sabíamos.


Essas cinco obras recentes na produção brasileira ilustram o trabalho de Exu: mais que subverter o tempo, elas reinterpretam o passado, ensinando que as coisas podem ser interpretadas por diferentes vieses. Elas incomodam e trazem matéria para reflexão. Elas nos permitem imaginar como é que podemos matar ontem um pássaro com uma pedra que atiramos hoje. Exu com essas obras oferece “soluções valiosas para que o amanhã não seja só um ontem, com um novo nome”7.



Notas:

  1. Filme disponível na plataforma digital Netflix.
  2. “Enciclopédia brasileira da diáspora africana”, de Nei Lopes.
  3.  Definição encontrada na Wikipedia.
  4. “Meme” pode ser uma frase, link, vídeo, site, imagem que se espalha por intermédio de e-mails, blogs, sites de notícia, redes sociais e demais fontes de informação.
  5.  Refiro-me ao artigo “The Problem of Perception” (2014) de Feminist Killjoys, onde a autora refere que quando alguém aponta um problema, em particular de caráter sexista ou racista, frequentemente essa pessoa acaba por responsabilizada pelo problema que apontou. Isto é, se a pessoa não tivesse sinalizado o problema, ele não existiria. A partir desse momento passa a ser uma “criação” de quem o denunciou, gerando-se um paradoxo de responsabilização.
  6. Texto de apresentação do filme no site da produtora Olhar Imaginário.
  7. Prefácio do livro “A des-educação do negro”, de Carter Godwin Woodson. Trad. Naia Veneranda Gomes da Silveira, Edipro, 2021, escrito por Emicida.


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