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Este artigo foi publicado originalmente no blogue da Blue Ventures, uma organização não-governamental que desenvolve abordagens transformadoras para potenciar modelos de gestão marinha locais e sustentáveis. Leia o artigo em inglês aqui e em francês aqui. A tradução é da responsabilidade da Oficina Global. Créditos da imagem em destaque: Blue Ventures.

Durante os últimos sete anos, tenho deixado todos os meses a pequena cidade de Maintirano para visitar os ilhéus do arquipélago das Ilhas Barren ou as aldeias costeiras da região de Melaky, na costa ocidental de Madagáscar. Enquanto membro da equipa da Blue Ventures, dou apoio às comunidades locais na gestão sustentável da pesca na Área Marinha Protegida (AMP) das Ilhas Barren, um dos últimos hotspots de biodiversidade que restam na parte ocidental do Oceano Índico. Nesta zona remota, cerca de 4000 pequenos pescadores dependem do oceano para a sua sobrevivência. Entre eles, estão amigos de infância, primos, vizinhos – eu nasci aqui. 


Até há alguns anos, poucas pessoas pescavam polvo nas Ilhas Barren. 


Até há alguns anos, poucas pessoas apanhavam polvo nas Ilhas Barren: a quantidade existente é menor do que no sul do país, e quando as mulheres dos ilhéus (que pescam a pé na maré baixa) tinham a oportunidade de apanhar alguns polvos, não havia compradores que fizessem o papel de intermediários, comprando os polvos para depois os venderem nas cidades costeiras. 


Pescadores de Vezo de todas as ilhas se reúnem com suas pirogas para o Dia da Independência em 2018 | Foto: Blue Ventures


No entanto, em 2015 e 2017, durante as reuniões nacionais da rede MIHARI – a rede de Áreas Marinhas de Gestão Local (AMGL) em Madagáscar – membros de comunidades das Ilhas Barren assistiram à abertura de reservas temporárias de polvos na costa leste do país. No seu regresso, disseram-me como ficaram impressionados com o tamanho dos polvos após três meses de fechamento temporário de pesca. Falaram disso às suas comunidades. Os pescadores migrantes do Sul que estiveram presentes nestas discussões também deram o seu testemunho sobre o sucesso destes fechamentos temporários para a pesca do polvo.

  

O então presidente de Vezo Miray Nosy Barren, a associação que faz a cogestão da AMP, mostrou-se particularmente entusiasta e convenceu os pescadores do seu acampamento em Nosy Maroantaly e do acampamento vizinho em Nosy Marify a experimentar este modelo de fechamento temporário de pesca. Os outros acampamentos decidiram esperar para observarem os resultados antes de se comprometerem. Isto passou-se em 2018, e nessa altura ninguém fazia ideia de quão grande se tornaria esta iniciativa. 


O dia da abertura

 

Os locais selecionados para fechamento de pesca situavam-se junto às duas ilhas e eram, portanto, fáceis de monitorizar. A pesca do polvo já era uma atividade insignificante nestas áreas de muita atividade, pelo que os fechamentos não arriscavam causar perdas de rendimentos.

 
No dia da abertura de pesca, representantes dos outros acampamentos reuniram-se em Nosy Maroantaly. Estavam muito curiosos para ver se a reserva temporária tinha funcionado. A localização da reserva no central no arquipélago, a cerca de uma hora e meia de viagem em piroga a partir dos outros acampamentos, tinha facilitado a sua presença. Eu havia convidado um jornalista da estação de televisão regional para me acompanhar, para que ele pudesse fazer uma reportagem televisiva e também documentar em vídeo os resultados da abertura de pesca de polvo para as comunidades piscatórias. 


Os dados recolhidos indicaram que os dois fechamentos tiveram um impacto reduzido no total das capturas. Dado que os locais escolhidos já tinham uma população de polvos pequena, os pescadores não interpretaram este resultado como um fator que pudesse pôr em causa o modelo. Na verdade, foi o peso e o tamanho recorde de alguns dos polvos que os impressionou. 

 

Alguns dias mais tarde, à luz da lua cheia, quando os pescadores se encontraram no mercado Maintirano para se abastecerem como de costume, não paravam de falar da abertura da pesca do polvo. 


Alguns dias mais tarde, à luz da lua cheia, quando os pescadores se encontraram no mercado Maintirano para se abastecer como de costume, não paravam de falar da abertura da pesca do polvo. Nos dias seguintes, visitei os vários ilhéus e mostrei o vídeo da abertura para que todos aqueles que tinham ficado nos seus acampamentos pudessem ver o resultado. Mostrar este vídeo foi importante, pois os pescadores gostam de discutir algo tangível, algo que podem ver com os seus próprios olhos. 


A desenvolver uma rede de reservas temporárias 


Os acampamentos que tinham organizado os fechamentos decidiram repetir a experiência, encerrando locais de maior produção, na esperança de obter melhores resultados. Acampamentos de outras ilhas e de outras comunidades situadas ao longo da costa principal do país decidiram também testar o modelo. Cada comunidade testou e adaptou o seu sistema de fechamento, o que resultou num total de 13 reservas temporárias, sete das quais eram dedicadas para o polvo e outras quatro para peixe. 


Partilhámos os resultados da abertura de cada reserva com todas as comunidades, para que pudessem aprender umas com as outras – e rapidamente as reservas se transformaram numa competição amigável. Em 2019, espalhou-se a notícia de que um acampamento tinha apanhado 580kg de polvo por ocasião da abertura, enquanto os outros tinham apanhado em média 160kg. Estes resultados aumentaram a motivação das comunidades para melhorarem os seus próprios fechamentos temporários. 


Em todo o território das Ilhas Barren, os pescadores têm aumentado gradualmente o tamanho das suas reservas temporárias de polvos. Estas reservas são estabelecidas em locais cada vez mais favoráveis e sistematicamente encerradas a qualquer atividade de pesca. Em dois anos, a área total das reservas quadruplicou e o peso total das capturas é hoje dez vezes superior ao inicial. As decisões de fechamento comunitário, inicialmente enquadradas num acordo oral tradicional, foram incorporadas no dina, o direito consuetudinário (tradicional) em que se baseia a gestão comunitária das AMGL em Madagáscar. Representantes das autoridades regionais, autoridades que regulam a pesca e autoridades responsáveis pelo ambiente e desenvolvimento sustentável marcaram a sua presença em dias de abertura, encorajando os pescadores a continuar.

Em dois anos, a área total das reservas quadruplicou e o peso total das capturas é hoje dez vezes superior ao inicial. 


Como as áreas de fechamento dos polvos eram muito perto dos acampamentos, todos participaram no esforço de monitorização. Ao contrário do que aconteceu noutras regiões do país, observou-se rapidamente um respeito coletivo pelos fechamentos temporários, o que contribuiu para os excelentes resultados. Por outro lado, os fechamentos não representavam uma competição com hábitos de pesca de polvo pré-existente, e os pescadores, que lutam diariamente pela sua subsistência, convenceram-se rapidamente de que os fechamentos resultariam numa fonte segura de rendimento. No segundo ano, a melhor época de pesca do peixe foi afetada por fortes ventos e foram as aberturas das reservas de polvo que permitiram aos pescadores ganhar dinheiro suficiente para comprar bens de primeira necessidade, como arroz e óleo. 


Comunidades na liderança
 

No passado, era a equipa da Blue Ventures que iniciava o processo de consulta para finalizar as características de cada reserva. 


Atualmente, as comunidades, graças à experiência adquirida, encarregam-se da gestão das suas próprias reservas. No passado, era a equipa da Blue Ventures que iniciava o processo de consulta para finalizar as características de cada reserva. Desde 2020, cabe a cada acampamento finalizar estas características de forma independente durante reuniões públicas. As mulheres, que continuam a ser as principais interessadas na pesca do polvo, são parte ativa nas discussões. A equipa da Blue Ventures, presente nestas reuniões, é consultada, se necessário, para aconselhamento técnico.  


As comunidades também assumiram a liderança na gestão da cadeia de valor. Em 2018, não havia intermediários locais que comprassem polvo fresco para o vender na cidade. O polvo que os pescadores conseguiam vender era comprado pelos intermediários ao preço de 1000 Ariary/kg (0,20 euros) – um preço muito baixo. No ano seguinte, as comunidades anunciaram antecipadamente a abertura das reservas a um intermediário de Morondava, a capital regional, a oito horas de distância de barco a motor. Mais bem informadas sobre os preços graças aos pescadores migrantes do Sul, as comunidades insulares pediram um aumento do preço de compra, mas só conseguiram um preço – ainda baixo – de 2000 Ariary/kg. 


Por isso, no ano passado, as comunidades recusaram-se coletivamente a vender o seu polvo a este preço. O comité de gestão da Vezo Miray Nosy Barren, e depois o próprio presidente da associação, foram convidados a visitar cada ilha, para que cada acampamento os pudesse informar diretamente desta sua resolução. Com base nesta decisão de recusa, que os pescadores tinham tido o cuidado de formalizar por escrito, a Vezo Miray Nosy Barren pediu então ao intermediário que aumentasse o seu preço de compra. Visto que a resposta tardava, os pescadores conseguiram entrar em contacto com um outro intermediário, que propôs um preço de 3000 Ariary/kg. Quando contactado novamente, o primeiro intermediário concordou finalmente com este preço. 


Graças à implementação dos fechamentos temporários de polvo e ao modelo de governação associativa, os pescadores das Ilhas Barren contam hoje com dois intermediários para o polvo e com um preço por quilo que é agora o triplo do inicial! 


As próximas etapas 


As comunidades estão agora a considerar estabelecer uma plataforma de gestão da pesca do polvo para assegurar um quadro mais sólido de colaboração com os intermediários: compromisso, respeito dos acordos, emprego de mão-de-obra local por parte dos intermediários. Tal plataforma, inspirada pelo Comité de Gestão do Polvo no Sudoeste de Madagáscar, poderia incluir autoridades locais e autoridades do setor da pesca, operadores privados e organizações da sociedade civil, bem com pequenos pescadores. 


Ao mesmo tempo, as comunidades querem focar-se nas reservas de espécies não-móveis como o caranguejo e o pepino do mar, e esperam recolher mais dados para poderem criar reservas de peixe eficientes em termos de produção a médio prazo. 


Na minha região natal, as reservas temporárias de pesca do polvo asseguraram meios de subsistência e serviram de estímulo para que as comunidades de pequenos pescadores se empenhassem na gestão sustentável da pesca, desde a produção até ao reforço da cadeia de valor. Agora que as comunidades decidiram seguir este caminho, estou impaciente para ver o que vai acontecer a seguir.

Com água azul límpida e areia branca e brilhante, as Ilhas Barren são instantaneamente reconhecidas e famosas por sua beleza natural impressionante | Foto: Blue Ventures



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